domingo, 13 de julho de 2014

Guia do Mochileiro das Galáxias - volume 1, de Douglas Adams

Arthur Dent é um homem comum, não há nele absolutamente nada de especial ou de valor atípico. 30 anos, alto, moreno, "quase nunca em paz consigo". Sua história não mereceria nenhuma nota a mais não fosse ele amigo de Ford Prefect, um alienígena preso há 15 anos na terra, que revela sua identidade a Dent poucos minutos antes da Terra ser destruída por Vogons, uma raça de extraterrestres das mais perigosas e insensíveis do universo.

Ao pegar uma carona na nave que acabara de destruir a Terra, Ford arrasta Dent consigo, tornando-o o único ser humano a conseguir escapar do extermínio que acabara de acontecer. No entanto, eles são expulsos da nave pelos Vogons e jogados no vácuo, onde morreriam em no máximo 30 segundos não fosse um dos eventos mais improváveis, senão impossíveis, ter acontecido: a Nave Coração de Ouro, roubada por Zaphod Beebrox, presidente do Governo Imperial Galáctico, cuja pompa da expressão na prática só serve para desviar a atenção dos que realmente têm poder, acolhê-los no vigésimo nono segundo.

O destino da nave é Margrathea, um antigo planeta cujo mito sobre si é a de que sediara, no passado, uma indústria de construção de planetas de luxo. O clímax da primeira parte da "trilogia de cinco" se desenvolve neste planeta, quando descobrimos que a Terra foi encomendada por ratos e que ela era nada menos que um programa construído por sugestão de um computador super inteligente com o propósito de encontrar as respostas fundamentais da vida, já que a resposta do computador, "43", não era inteligível.

O livro é uma provocação inteligente e repleta de sarcasmos aos seres humanos, que não conseguem ficar calados por medo de, não usando os lábios constantemente, esses grudarem e nunca mais abrirem (fonte: a definição de humanos n'O Guia do Mochileiro das Galáxias). Somos na ficção menos inteligentes até que os golfinhos. Embora acreditemos que nossa capacidade de construir prédios, computadores nos passem uma percepção de inteligência superior, enquanto golfinhos só sabem nadar e se divertir, esses também se acham mais inteligentes pelos mesmos motivos dos humanos.

Os ratos tentam capturar Dent, que pode ajudar na pesquisa que estava se desenvolvendo na Terra e que estava a apenas pouco tempo do seu final. Seu cérebro pode dar continuidade à pesquisa. Ele, Zaphod, Trillian (a outra humana a escapar da Terra, mas bem antes de Dent), Marvin (um robô a serviço de Zaphod) e Ford Prefect fogem e darão continuidade à viagem pelo universo.

Zulu (2013), de Jérôme Salle

Um homem negro é assassinado, aos olhos do seu filho, por brancos. Estamos na África do Sul dividida conforme a cor do indivíduo. A maioria é comandada pela minoria, independente da  sua competência e da sua qualidade humana. Anos depois, após o apartheid político ser derrubado, restando o apartheid social (intensificado entre os anos de 95 e 2000, quando a renda das famílias brancas cresceu 15% e a de famílias negras caiu 19%), Ali (Forrest Whitaker) é um comandante da polícia encarregado de investigar o assassinato brutal da filha de um famoso treinador da equipe nacional de rúgby. Zulu, nome do filme, é a língua mais falada na África do Sul, seguida pela Xhosa.
"Townships", as favelas sul-africanas
.O filme tem um enredo previsível, encaixa-se facilmente no rótulo dos filmes comerciais, com personagens também repetitivos. De todo modo, é interessante observar a maneira como o perdão, fragilmente construído pela sociedade sul-africana, e por ser tão frágil, tão suscetível à mudança de ânimo, se opera na consciência do policial negro. A violência e a miséria têm cor. E a vulnerabilidade dos negros pobres, que em condições de miserabilidade tão profundas não rejeitam nem os olhos e cérebros das cabras que os alimentam, é aproveitada, no filme, por brancos que operaram no passado, no regime racista, programas de limpeza étnica.

Dependemos do desenlace do filme da morte de uma branca, a filha do famoso treinador, não prevista no script. Enquanto isso, crianças negras, viciadas no Tick, a droga da limpeza étnica que voltou às ruas ainda mais mortal, vão sendo vítimas de um silencioso holocausto que segue dizimando os negros e pobres nas favelas da cidade.

O ator Forrest Whitaker está em alto nível no papel de Ali, expressando sofrimento, compaixão e indignação emprestando uma autêntica e cativante interpretação ao personagem.

A formação do Estado burguês no Brasil

Em oposição às vias clássicas de transição ao capitalismo, no Brasil o processo deu-se contemporizando com os elementos da velha ordem pré-capitalista
Segundo o conceito marxista de Estado, a função desse é garantir a dominação de uma classe sobre a outra. Conforme Engels, o Estado, seja ele burguês, feudal ou escravista, realiza sua dominação fundamentalmente através do controle da repressão (exército, tribunais, etc) e por meio de um sistema coletor de impostos. Cada tipo particular de Estado conduz de maneira específica essa dominação.

O capitalismo possui como aspecto que lhe é peculiar a troca da força de trabalho por um salário, que lhe é pago pelo dono do meio de produção. Essa relação mercantil é ilusória porque produz a aparência de uma troca entre iguais, o que, sabemos, não é verdade. O detentor do meio de produção, diante da disparidade material, encontra-se em condições privilegiadas para estabelecer a contratação da força de trabalho. A maneira como isso é possível resulta de uma estrutura jurídica-ideológica do Estado burguês. A exploração se manifesta, diferentemente dos modos de produção anteriores, no âmbito da economia (particularmente pelo sistema jurídico e ideológico) e não pela coerção física.

Ainda nesse sentido, o Estado burguês possui uma forma peculiar de organização do aparelho burocrático. Neste, há a presença dos setores dominados na composição estatal, como também, e por consequência disso, há uma distinção entre o público e o privado; o Estado não é uma propriedade do príncipe. Sua direção política também é produto do posicionamento das frações da burguesia e aliados. A fração dominante, que articula as demais em torno do seu projeto, é chamada de hegemônica. Em momentos de crise aguda, é possível que a burocracia de Estado assuma uma autonomia frente às classes em luta, fenômeno chamado por Marx de Bonapartismo.

A nossa transição burguesa é longa e contempla várias etapas. Diversos autores defendem que os marcos da mudança política que permitiram a transformação econômica ocorreram no final do século XIX, com a abolição da escravidão, a proclamação da República e com a Constituição de 1891. Nesse momento, diversas transformações se produziram no âmbito da superestrutura: a separação da Igreja e do Estado (laicização), extinção do Poder Moderador; eleições diretas para presidente, inclusive das Províncias; fim do Senado vitalício e da Guarda Nacional; e, dentre outros, uma maior autonomia no âmbito dos estados.

Esse processo vai se alargar, manifestando-se um consistente potencial econômico e industrial do país, com a Revolução de 30, que é resultado da insatisfação da classe média, em especial dos militares, e com a crise do café, produto que garantia uma certa pacificação no âmbito das elites dominantes. Apesar das mudanças advindas com a transformação política, inclusive abrindo o caminho para que o setor industrial assuma a hegemonia enquanto fração de classe, nossas mudanças se expressaram através do que Gramsci e Lenin classificaram, respectivamente, como Revolução Passiva e Via Prussiana, conservando elementos da velha sociedade em sintonia com o novo. Dessa maneira, parte da revolução burguesa não se realizou, como, por exemplo, a transformação da estrutura agrária nacional, fazendo dessa revolução uma revolução ainda incompleta.

sábado, 5 de julho de 2014

Andróides sonham com ovelhas elétricas? (1968), de Philip K. Dick

Decard na adaptação do livro para o cinema (Blade Runner).
Segundo livro que li de Philip Dick, imediatamente após O Homem do Castelo Alto (escrito em 1962 e que revela um sinistro mundo onde os países do Eixo conquistaram a Segunda Guerra Mundial. Em "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?" estamos em 1992, anos após a Guerra Mundial Terminus, a qual provocou a morte de um grande número de pessoas, plantas e animais. Dentre os que sobreviveram, a maior parte emigrou para planetas colonizados, com o auxílio de androides, e a outra parte, residente na Terra, era classificada em Normais e Especiais. Estes, indivíduos de inteligência inferior afetados pela Poeira, eram proibidos de emigrar, enquanto aqueles, além de deter essa permissão, podiam até mesmo se reproduzir desde que dentro das cotas estabelecidas por lei. A humanidade vivia o ápice da sua desagregação e deterioração.

Na trama, seis androides Nexus-6, um modelo com semelhança física idêntica à humana e com preparo intelectual superior, à exceção da capacidade emocional, os quais serviam de escravos no apoio à colonização de Marte, conseguiram escapar e refugiar-se na Terra. Caçadores de recompensa tinham a permissão para "aposentar" as máquinas e ganhavam um bom dinheiro por isso. Rick Decard é um desses caçadores.

No nosso mundo, ter objetos que poucos têm é um sinônimo de distinção. Um iphone, um computador da Apple, um carro importado, tudo isso são componentes que se estendem e complementam a personalidade humana. No mundo descrito por Dick, não é diferente. Como os animais foram quase todos extintos, ter uma espécie autêntica, de estimação, significa prestígio e privilégio. Aos que não possuem dinheiro suficiente para tanto, a alternativa é comprar réplicas elétricas desses animais. Decard tem uma ovelha elétrica, mas seu grande sonho é ter, tal como seu vizinho, Bill Barbour, seu próprio animal autêntico.

A oportunidade para o caçador de recompensas surge, então, com a fuga dos seis androides para a Terra, depois que um deles, Max Polokov, atingiu Dave Holden, até então o mais preparado caçador da cidade. Decard terá que enfrentar os androides mais evoluídos tecnologicamente até então criados pela Corporação Rosen. 

Ao longo da história, vamos conhecendo diversos personagens que ajudam a decifrar a psicologia por trás desse mundo obscuro e sombrio descrito por Dick e que, não raramente, se assemelha tanto ao nosso. Como não associar o Programa de Buster Gente Fina, um excêntrico apresentador, e sua entrevistada Amanda Werner (convidada dia sim, dia não) com os programas de televisão atuais, como Faustão, em que mudam-se os rostos dos convidados pelo apresentador, mas não a essência, que, sem qualquer individualidade, repetem o discurso de rebanho sob a proteção das conveniências que dão tanta segurança à vida coletiva?

O livro tem momentos espetaculares, mas aquele cujo suspense me deixou mais vidrado aconteceu no meio da história, após a abordagem de Decard ao androide Luba Luft, uma cantora espetacular por quem ele acaba desenvolvendo afeição e admiração após vê-la na apresentação de "A Flauta Mágica", de Mozart. Esse momento de contradição entre o desejo e a missão do protagonista revela uma mente angustiada, mas que, ao final, aceita a condição básica da vida: a de que seremos sempre obrigados a violar a nossa própria identidade. Vivemos enclausurados em caixas que representam as condicionantes impostas a nós e da qual alguns de nós conseguem sair apenas temporariamente.

"O problema dos coelhos é que todo mundo tem um" (Decard)

domingo, 29 de junho de 2014

Viver (1952), de Akira Kurosawa

"Eu não posso simplesmente morrer - pois
não sei para que vivi durante todos este anos"
Conheci Viver (1952), do prestigiado diretor japonês Akira Kurosawa, pela crítica fenomenal de Roger Ebert (A Magia do Cinema). O protagonista do filme, Kanji Watanabe, é um dedicado serviçal da burocracia pública, com 30 anos de vínculo e ocupando o cargo de Chefe de Seção. Ao descobrir-se com câncer de estômago, um atestado de morte, passa a refletir sobre o vazio de sua insignificante vida e a buscar, a princípio de forma quase infantil, um significado para o mundo frequentando bares e festas noturnas de Tóquio, ausentando-se por vários dias do trabalho.

A burocracia pública nos é apresentada como um espaço que serve para si própria. Ao invés da construção de soluções para os problemas da sociedade, seus agentes servem a seus próprios interesses, dificultando a mediação de conflitos e agindo de maneira escapista aos que os procuram. Desse modo, a própria atividade laboral do protagonista é vazia e distante da realidade das pessoas, a quem deveria servir. O mundo da burocracia pública, lento e inerte, se choca com a dinâmica realidade do lado de fora.

A vida de Watanabe não deveria servir de espanto à maioria das pessoas cuja rotina é regada de convenções fixadas e reproduzidas ao longo de séculos. O protagonista seguiu à risca as regras socialmente concebidas e adequáveis a si: um casamento, um emprego estável, filho. Na superfície, tudo ia bem, mas no detalhe temos uma família desunida pela morte precoce da mulher e no distanciamento do unigênito, além de um emprego desumanizante que nunca lhe proporcionou um contentamento consistente. Essa é a forte sensação quando nos encontramos na casa de Watanabe ou diante de sua mesa de Chefe de Seção.

Mas serve de espanto pela forma intensa, intimista e emotiva com que Takashi Shimura dá vida ao sofrimento e à angústia do personagem. A consciência de sua vida como um tempo desperdiçado desperta sobre ele um forte componente ético que se expressa na busca de solução para que saia do papel um parque, projeto que, como tantos outros, esbarra na compartimentação do serviço público, onde, no final, ninguém é responsável por nada.

A trajetória de Watanabe até a inauguração do parque e à sua morte nos é transmitida em seu funeral, momentos em que amigos, familiares e colegas de trabalho conversam sobre os últimos meses do Chefe de Seção e sua dedicação é reconhecida por todos os presentes. Não apenas isso, como também conciliam dar consequência aos esforços do falecido. O filme todo é poético e não poderia ter um encerramento mais simbólico: Assim como as fortes impressões sobre o filme se encerram e voltamos às nossas vidas comuns, rotineiras e sem sentido, também os colegas do nosso protagonista retomam aos mesmos hábitos corriqueiros e inúteis de seus empregos públicos.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Cultura e Sociedade no Brasil (2011), de Carlos Nelson Coutinho

Palavras-chave: Cultura; Organização da Cultura; Vias de Transição; Oriente; Ocidente; Sociedade Civil; Intelectual Orgânico; Revolução Passiva; Via Prussiana;

O intuito do livro Cultura e Sociedade no Brasil, de Carlos Nelson Coutinho, é analisar o processo de formação da sociedade brasileira, transcorrido por "vias não-clássicas" e como essa formação interferiu na produção da cultura, em especial a literatura, temática que será discutida a partir de ensaios sobre as obras de Graciliano Ramos, Lima Barreto, dentre outros.

A discussão sobre a cultura em Coutinho subordina-se ao conceito do intelectual italiano Antônio Gramsci (1891-1937), para quem a "organização da cultura" depende necessariamente da existência de uma sociedade civil, cujo conceito, com base na análise de Coutinho sobre a obra de Gramsci, expressa que: 
(...) com a intensificação dos processos de socialização da política, com algo que ele [Gramsci] chama algumas vezes de "estandartização" dos comportamentos humanos gerada pela pressão do desenvolvimento capitalista, surge uma esfera social nova, dotada de leis e de funções relativamente autônomas e específicas e - o que nem sempre é observado - de uma dimensão material própria. É essa esfera que ele vai chamar de "sociedade civil" (COUTINHO, 2011:14).
O tipo de produção cultural de um determinado lugar em uma determinada época, como veremos, depende necessariamente dos vínculos proporcionados pela existência ou não da sociedade civil. Quando a formação social é de tipo "oriental", o controle do Estado e a dependência a ele é quase que absoluta, diferentemente da sociedade "ocidental", onde os mecanismos de coerção não se limitam mais às formas diretas (aparelhos policial-militares, organismos de repressão em geral, burocracia sociedade, em outras palavras, a "sociedade política").

No âmbito da sociedade civil, "se operam relações sociais de direção político-ideológica, de hegemonia" (p. 14) com o intuito de garantir o consenso dos dominados e a legitimação de dada formação social. São exemplos de Aparelhos Privados de Hegemonia, presentes na sociedade civil, os órgãos de imprensa, os partidos políticos, a Igreja, as instituições de ensino, empresas, etc, os quais não realizam a coerção de maneira direta, mas de forma mais sutil e ideológica, promovendo a adesão dos dominados às ideias dominantes.

Desse modo, com a ocidentalização da política, Gramsci concebe que "a organização da cultura já não é algo diretamente subordinado ao Estado, mas resulta da própria trama complexa e pluralista da sociedade civil" (p. 16). Os intelectuais, portanto, não se ligam mais somente ao Estado e a seus aparelhos ideológicos, mas exercem suas atividades mediada por essas novas formas autônomas de produção cultural. O "intelectual orgânico", nesse ambiente, liga-se à sua classe de origem ou de adoção por meios dos aparelhos privados de hegemonia de que resultam com o surgimento da sociedade civil.

O Brasil conheceu uma fase caracterizada pela completa ausência de sociedade civil. A nossa colonização está inserida num ambiente de predomínio do capital mercantil, num período de intensa expansão do mercado mundial. O sentido da colonização era a extorsão de valores de uso produzidos pelas economias não-capitalistas, os quais eram transformados em valores de troca no mercado internacional. Não tínhamos até então, no Brasil, o trabalho "livre", assalariado, sendo o modo de produção escravista o elemento determinante da nossa formação econômico-social.

Inexistiam partidos políticos, um sistema educacional que não o da catequese, não havia parlamento e sequer se encontrava a possibilidade de impressão de livros ou jornais. Os protagonistas do processo cultural, os intelectuais do período, ainda que poucos, eram ligados à administração colonial e à Igreja, que na época funcionava como um Aparelho Ideológico de Estado. A Independência não alterou esse quadro, visto que foi uma articulação produzida "pelo alto" - um golpe palaciano sem a participação popular.

Se ainda hoje é difícil sobreviver no mercado cultural no brasileiro, imagine no século XIX. A cooptação pelas classes dominantes, por meio da ligação com proprietários influentes, era comum:
(...) Ser intelectual era ser ocioso; e precisamente na possibilidade de desfrutar desse ócio é que residia o traço de distinção, o status superior do intelectual. E esse status, ao mesmo tempo em que servia de disfarce para a posição dependente do intelectual, acentuava o caráter ornamental da cultura dominante da época (COUTINHO, 2011:21).
Esse caráter de dependência, uma idiossincrasia dos intelectuais da época, os distanciavam dos problemas nacionais e lhes restringiam a capacidade de se contraporem ao poder vigente. O romantismo e o naturalismo foram exemplos de fuga dos problemas concretos; aquele por seu culto à subjetividade deixa à sombra o tema da escravidão e este ao associar a miséria do país à nossa natureza imanente (clima, raça, etc), desvia a atenção do contexto histórico-social do país.

O processo de transição do Brasil ao capitalismo, "pelo alto" refletiu-se em outras formas ostensivas sobre as possibilidades de criação cultural. Os intelectuais que anteriormente rejeitaram a cooptação pelas classes dominantes enfrentaram graves dificuldades financeiras ou sofreram repressão - algo comum na história política do país. Enquanto aqueles que se vinculavam às classes dominantes encontravam um refúgio aprazível e tranquilo, "as camadas populares são frequentemente 'decapitadas' e lutam com grandes dificuldades para dar uma figura sistemática à sua autoconsciência ideológica" (p. 48).

A partir dos anos 20, segundo Coutinho, a sociedade brasileira vai se tornando mais complexa e o capitalismo finca raízes mais profundas nas relações internas, dinamizando a estrutura social do país. Assim "novas classes e camadas sociais se apresentam no cenário político" (p. 23). É o momento em que começam as primeiras lutas operárias, com uma imprensa de orientação predominantemente anarquista, quando também se organizam associações sindicais e se fomenta um potencial cultural desvinculado do Estado.

Lima Barreto surge nesse ambiente de contradições sociais, de uma tentativa de organização "por baixo" da vida política e da cultura nacionais. Embora o modelo "prussiano" ou "pelo alto" da Revolução de 30 tenha evitado a organização autônoma da sociedade civil (fechando partidos e parlamento e criando um organismo cultural totalitário, o Departamento de Imprensa e Propaganda), é nesse período que surgem no Brasil os primeiros movimentos de interpretação da nossa história a partir do marxismo, como Evolução Política do Brasil (Caio Prado Júnior) e também quando brotam movimentos de massas inéditos como a Aliança Nacional Libertadora e a Ação Integralista Brasileira.

O processo de fomentação de uma cultura autônoma e desvinculada dos poderes dominantes não foi linear, mas obstaculizado conscientemente, especialmente na fase ditatorial-militar, momento em que o Brasil passa por uma nova etapa do desenvolvimento capitalista: o monopolista de Estado. Nesse período, os meios de comunicação de massa passaram a ser dirigidos por grandes monopólios. Não apenas a televisão, como a grande imprensa e o cinema foram submetidos à nova lógica. O "capital mínimo" (Marx) para a criação de um organismo cultural tornou-se muito mais elevado. Apesar disso, o capitalismo proporcionou um estágio diferente à vida cultural do país,
(...) ao criar um mercado de força de trabalho intelectual, alterou a situação dos produtores de cultura: a possibilidade de que eles exerçam sua função já não depende do favor pessoal, já não resulta da cooptação. O velho intelectual elitista, prestigiado por possuir cultura, converte-se cada vez mais em trabalhador assalariado (COUTINHO, 2011:32).
Por outro lado, o Capitalismo Monopolista de Estado (CME), ao tempo em que atua para diversificar o mercado cultural no país, "age como um novo e poderoso meio de cooptação dos intelectuais pelo sistema de dominação do qual essa indústria cultural é hoje peça de destaque" (p. 64). É uma forma moderna do que Thomas Mann denominou de "intimismo à sombra do poder", quando os intelectuais, protegidos pela elite dominante, omitem-se sobre os conflitos essenciais da sociedade. Os altos salários pagos pelas corporações atuam como um atrativo fundamental.

Ainda assim, a ditadura militar viu florescer um forte apelo contrário ao regime advinda dos intelectuais. Isso dava mostras da crescente complexificação da sociedade brasileira e da diferenciação que o desenvolvimento capitalista ia proporcionando no plano nacional, apontando uma tendência de reviravolta sobre a hegemonia dos círculos "intimistas" em prol das correntes nacionalistas e populares.

Lima Barreto e seu significado à literatura brasileira

O nosso modelo de transição para o capitalismo, operando "pelo alto", excluindo a participação popular, difundiu a ideia de que as mudanças operadas aqui são independentes da ação humana, resultando da ação singular de "indivíduos excepcionais". Nesse cenário de antagonismo entre o povo e a nação, a existência de uma consciência nacional-popular era uma tarefa difícil.

O "intimismo à sombra do poder" revelava um país cujos problemas e vicissitudes históricas eram consequências de fatores biológicos e ambientais, frutos de nossa natureza e sobre os quais não era possível  a transformação pela ação humana.

A obra realista de Lima Barreto é adjetivada por Coutinho como "excepcional", diante de seu caráter singular frente a um período da literatura brasileira dominada por obras escapistas e antirrealistas. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra referencial como objeto de análise, temos a figura de Quaresma, um "herói problemático", aquele "que busca valores autênticos em um mundo degradado, mas que, precisamente por causa dessa degradação objetiva, relativiza ou deforma os próprios valores autênticos que norteiam subjetivamente a ação" (p. 120). A extravagância, o bizarro e o ridículo sã

segunda-feira, 23 de junho de 2014

O Verão Sem Homens, de Siri Hustvedt (2011)

Meu primeiro encontro com o livro da escritora americana Siri Hustvedt, deu-se conferindo as dicas propostas pela revista Scientific American Brasil - de fevereiro, creio. Em um pequeno fragmento na seção de ficção, algo tão comum e tão intrínseco à ideia da união eterna: uma filósofa e poeta que após 30 anos de casamento vê seu marido, um cientista de prestígio internacional, se envolver com uma outra mulher, muito mais nova do que ela, o que lhe provoca transtorno psicótico transitório.

Uma internação, seguida de viagem à cidade da mãe, para onde se refugia dos acontecimentos recentes, dá um sentido de arguta sensibilidade ao livro, onde a protagonista resgata a si própria diante de aspectos rotineiros da vida: uma mensagem anônima, a solidariedade recíproca do grupo de senhoras e a relação dessas com a velhice, a vizinha e seus conflitos matrimoniais, as setes meninas e a ambição e inveja que as envolvem.

Há um conjunto de reflexões profundas sobre a velhice, sobre a morte, sobre os prazeres da vida ("alguns de nós vive enclausurado dentro de uma caixa de onde só se pode sair temporariamente") e sobre relações genuinamente humanas. Tudo visto sob um olhar atento, sensível e perspicaz de Mia Friedricksen. Na medida que avançamos a leitura, o drama do amor partido vai perdendo sua força interna e, pari passu, ganhando força a personalidade humana e a individualidade da protagonista.