terça-feira, 24 de junho de 2014

Cultura e Sociedade no Brasil (2011), de Carlos Nelson Coutinho

Palavras-chave: Cultura; Organização da Cultura; Vias de Transição; Oriente; Ocidente; Sociedade Civil; Intelectual Orgânico; Revolução Passiva; Via Prussiana;

O intuito do livro Cultura e Sociedade no Brasil, de Carlos Nelson Coutinho, é analisar o processo de formação da sociedade brasileira, transcorrido por "vias não-clássicas" e como essa formação interferiu na produção da cultura, em especial a literatura, temática que será discutida a partir de ensaios sobre as obras de Graciliano Ramos, Lima Barreto, dentre outros.

A discussão sobre a cultura em Coutinho subordina-se ao conceito do intelectual italiano Antônio Gramsci (1891-1937), para quem a "organização da cultura" depende necessariamente da existência de uma sociedade civil, cujo conceito, com base na análise de Coutinho sobre a obra de Gramsci, expressa que: 
(...) com a intensificação dos processos de socialização da política, com algo que ele [Gramsci] chama algumas vezes de "estandartização" dos comportamentos humanos gerada pela pressão do desenvolvimento capitalista, surge uma esfera social nova, dotada de leis e de funções relativamente autônomas e específicas e - o que nem sempre é observado - de uma dimensão material própria. É essa esfera que ele vai chamar de "sociedade civil" (COUTINHO, 2011:14).
O tipo de produção cultural de um determinado lugar em uma determinada época, como veremos, depende necessariamente dos vínculos proporcionados pela existência ou não da sociedade civil. Quando a formação social é de tipo "oriental", o controle do Estado e a dependência a ele é quase que absoluta, diferentemente da sociedade "ocidental", onde os mecanismos de coerção não se limitam mais às formas diretas (aparelhos policial-militares, organismos de repressão em geral, burocracia sociedade, em outras palavras, a "sociedade política").

No âmbito da sociedade civil, "se operam relações sociais de direção político-ideológica, de hegemonia" (p. 14) com o intuito de garantir o consenso dos dominados e a legitimação de dada formação social. São exemplos de Aparelhos Privados de Hegemonia, presentes na sociedade civil, os órgãos de imprensa, os partidos políticos, a Igreja, as instituições de ensino, empresas, etc, os quais não realizam a coerção de maneira direta, mas de forma mais sutil e ideológica, promovendo a adesão dos dominados às ideias dominantes.

Desse modo, com a ocidentalização da política, Gramsci concebe que "a organização da cultura já não é algo diretamente subordinado ao Estado, mas resulta da própria trama complexa e pluralista da sociedade civil" (p. 16). Os intelectuais, portanto, não se ligam mais somente ao Estado e a seus aparelhos ideológicos, mas exercem suas atividades mediada por essas novas formas autônomas de produção cultural. O "intelectual orgânico", nesse ambiente, liga-se à sua classe de origem ou de adoção por meios dos aparelhos privados de hegemonia de que resultam com o surgimento da sociedade civil.

O Brasil conheceu uma fase caracterizada pela completa ausência de sociedade civil. A nossa colonização está inserida num ambiente de predomínio do capital mercantil, num período de intensa expansão do mercado mundial. O sentido da colonização era a extorsão de valores de uso produzidos pelas economias não-capitalistas, os quais eram transformados em valores de troca no mercado internacional. Não tínhamos até então, no Brasil, o trabalho "livre", assalariado, sendo o modo de produção escravista o elemento determinante da nossa formação econômico-social.

Inexistiam partidos políticos, um sistema educacional que não o da catequese, não havia parlamento e sequer se encontrava a possibilidade de impressão de livros ou jornais. Os protagonistas do processo cultural, os intelectuais do período, ainda que poucos, eram ligados à administração colonial e à Igreja, que na época funcionava como um Aparelho Ideológico de Estado. A Independência não alterou esse quadro, visto que foi uma articulação produzida "pelo alto" - um golpe palaciano sem a participação popular.

Se ainda hoje é difícil sobreviver no mercado cultural no brasileiro, imagine no século XIX. A cooptação pelas classes dominantes, por meio da ligação com proprietários influentes, era comum:
(...) Ser intelectual era ser ocioso; e precisamente na possibilidade de desfrutar desse ócio é que residia o traço de distinção, o status superior do intelectual. E esse status, ao mesmo tempo em que servia de disfarce para a posição dependente do intelectual, acentuava o caráter ornamental da cultura dominante da época (COUTINHO, 2011:21).
Esse caráter de dependência, uma idiossincrasia dos intelectuais da época, os distanciavam dos problemas nacionais e lhes restringiam a capacidade de se contraporem ao poder vigente. O romantismo e o naturalismo foram exemplos de fuga dos problemas concretos; aquele por seu culto à subjetividade deixa à sombra o tema da escravidão e este ao associar a miséria do país à nossa natureza imanente (clima, raça, etc), desvia a atenção do contexto histórico-social do país.

O processo de transição do Brasil ao capitalismo, "pelo alto" refletiu-se em outras formas ostensivas sobre as possibilidades de criação cultural. Os intelectuais que anteriormente rejeitaram a cooptação pelas classes dominantes enfrentaram graves dificuldades financeiras ou sofreram repressão - algo comum na história política do país. Enquanto aqueles que se vinculavam às classes dominantes encontravam um refúgio aprazível e tranquilo, "as camadas populares são frequentemente 'decapitadas' e lutam com grandes dificuldades para dar uma figura sistemática à sua autoconsciência ideológica" (p. 48).

A partir dos anos 20, segundo Coutinho, a sociedade brasileira vai se tornando mais complexa e o capitalismo finca raízes mais profundas nas relações internas, dinamizando a estrutura social do país. Assim "novas classes e camadas sociais se apresentam no cenário político" (p. 23). É o momento em que começam as primeiras lutas operárias, com uma imprensa de orientação predominantemente anarquista, quando também se organizam associações sindicais e se fomenta um potencial cultural desvinculado do Estado.

Lima Barreto surge nesse ambiente de contradições sociais, de uma tentativa de organização "por baixo" da vida política e da cultura nacionais. Embora o modelo "prussiano" ou "pelo alto" da Revolução de 30 tenha evitado a organização autônoma da sociedade civil (fechando partidos e parlamento e criando um organismo cultural totalitário, o Departamento de Imprensa e Propaganda), é nesse período que surgem no Brasil os primeiros movimentos de interpretação da nossa história a partir do marxismo, como Evolução Política do Brasil (Caio Prado Júnior) e também quando brotam movimentos de massas inéditos como a Aliança Nacional Libertadora e a Ação Integralista Brasileira.

O processo de fomentação de uma cultura autônoma e desvinculada dos poderes dominantes não foi linear, mas obstaculizado conscientemente, especialmente na fase ditatorial-militar, momento em que o Brasil passa por uma nova etapa do desenvolvimento capitalista: o monopolista de Estado. Nesse período, os meios de comunicação de massa passaram a ser dirigidos por grandes monopólios. Não apenas a televisão, como a grande imprensa e o cinema foram submetidos à nova lógica. O "capital mínimo" (Marx) para a criação de um organismo cultural tornou-se muito mais elevado. Apesar disso, o capitalismo proporcionou um estágio diferente à vida cultural do país,
(...) ao criar um mercado de força de trabalho intelectual, alterou a situação dos produtores de cultura: a possibilidade de que eles exerçam sua função já não depende do favor pessoal, já não resulta da cooptação. O velho intelectual elitista, prestigiado por possuir cultura, converte-se cada vez mais em trabalhador assalariado (COUTINHO, 2011:32).
Por outro lado, o Capitalismo Monopolista de Estado (CME), ao tempo em que atua para diversificar o mercado cultural no país, "age como um novo e poderoso meio de cooptação dos intelectuais pelo sistema de dominação do qual essa indústria cultural é hoje peça de destaque" (p. 64). É uma forma moderna do que Thomas Mann denominou de "intimismo à sombra do poder", quando os intelectuais, protegidos pela elite dominante, omitem-se sobre os conflitos essenciais da sociedade. Os altos salários pagos pelas corporações atuam como um atrativo fundamental.

Ainda assim, a ditadura militar viu florescer um forte apelo contrário ao regime advinda dos intelectuais. Isso dava mostras da crescente complexificação da sociedade brasileira e da diferenciação que o desenvolvimento capitalista ia proporcionando no plano nacional, apontando uma tendência de reviravolta sobre a hegemonia dos círculos "intimistas" em prol das correntes nacionalistas e populares.

Lima Barreto e seu significado à literatura brasileira

O nosso modelo de transição para o capitalismo, operando "pelo alto", excluindo a participação popular, difundiu a ideia de que as mudanças operadas aqui são independentes da ação humana, resultando da ação singular de "indivíduos excepcionais". Nesse cenário de antagonismo entre o povo e a nação, a existência de uma consciência nacional-popular era uma tarefa difícil.

O "intimismo à sombra do poder" revelava um país cujos problemas e vicissitudes históricas eram consequências de fatores biológicos e ambientais, frutos de nossa natureza e sobre os quais não era possível  a transformação pela ação humana.

A obra realista de Lima Barreto é adjetivada por Coutinho como "excepcional", diante de seu caráter singular frente a um período da literatura brasileira dominada por obras escapistas e antirrealistas. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra referencial como objeto de análise, temos a figura de Quaresma, um "herói problemático", aquele "que busca valores autênticos em um mundo degradado, mas que, precisamente por causa dessa degradação objetiva, relativiza ou deforma os próprios valores autênticos que norteiam subjetivamente a ação" (p. 120). A extravagância, o bizarro e o ridículo sã

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