quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O poder da identidade (Manuel Castells, 1996)

As identidades organizam significados; diferentemente de papéis, por onde se sistematizam as funções. Aquelas podem ser de três tipos: (I) legitimadora, a qual é introduzida por instituições dominantes cujo objetivo é a expansão e a racionalização da dominação; de (II) resistência, a qual emerge por atores em posição de desvalor ou de estigma pela lógica de dominação; e de (III) projeto, resultado de movimentos construídos por atores sociais a partir de tipos materiais de cultura e capaz de construir uma nova identidade apta à redefinição de sua posição na sociedade, e assim, da própria estrutural social.

A identidade legitimadora dá resultado a uma sociedade civil – conjunto de organizações e instituições, assim como atores sociais, cujo papel socialmente estruturado, reproduz a identidade que racionaliza as fontes de dominação global. As organizações, num sentido gramsciano, têm um duplo caráter à medida que prolongam a dinâmica do Estado e se arraigam profundamente entre as pessoas.

A identidade de resistência leva à formação de comunidades ou comunas, na formulação de Etzioni. Essa é a forma de se resistir a uma opressão, que, na ausência dessa coletividade, não seria possível. Os sujeitos estariam se estruturando hoje em redes e identidades de projetos a partir da resistência comunal - em contraposição à formação tradicional sob a perspectiva da sociedade civil, como o movimento dos trabalhadores.

O feminismo é um exemplo da identidade de projeto, edificado pela luta das mulheres frente ao patriarcado, à estrutura produtiva, à reprodução, sexualidade e personalidade, elementos sobre os quais se assentam as sociedades historicamente estabelecidas.

Um dos inúmeros exemplos citados por Castells é a identidade islâmica contemporânea, que representa uma reação às consequências negativas da globalização e do projeto nacionalista pós-colonial. A modernização bem-sucedida dos anos 50 e 60 deu passagem a um ambiente de pessimismo e degradação da economia a partir dos anos 70. A população jovem e urbana, com grau de instrução elevado, viu suas expectativas serem frustradas e novas formas de dependência cultural ganharam relevo, se refletindo fortemente na política desses países.

A desagregação étnica: raça, classe e identidade na sociedade em rede

As etnias sempre significaram uma fonte indiscutível de significado e reconhecimento, resultando em movimentos como dos índios mexicanos que em 1994 lutaram por justiça social. Nos Estados Unidos, os movimentos em defesa dos direitos civis na década de 60 deram consequência a uma classe média afro-americana expressiva e bem educada, com posição social confortável, beneficiada com os programas afirmativos de inserção social.

Na sociedade da informação, perde influência os trabalhos manuais e menos exigentes do ponto de vista educacional. Isso reflete na questão étnica e nacional. Nos Estados Unidos e em outros países, com as políticas de ação afirmativa uma parte dos negros em ascensão está saindo das periferias das cidades e melhorando as suas condições de vida. Isso vai provocando uma fragmentação e individualização cada vez maior em relação aos que continuam na periferia, apesar da sociedade ainda não ter alçado a uma estatura aberta e multirracial.

Estado e Poder

Frente a esses desafios identitários e fragmentados, o controle do Estado sobre o tempo e o espaço estaria sendo superado pelos fluxos globais de capital, produtos, serviços, tecnologias, comunicação e informação. Identidades múltiplas e sujeitos autônomos estariam desafiando a apreensão do tempo histórico pelo Estado. Ademais, a debilidade estatal é reforçada pela transnacionalização da produção – principalmente pelas redes produtivas e de comércio constituída a partir daí.

Castells considera que a emergência de processos globais que afetam em larga dimensão as sociedades em todo o mundo, como a questão ambiental, e a incapacidade de os Estados responderem a esses desafios cria uma tensão para a “aliança básica entre Estado e sociedade”. A criação de super Estado-nação, a despeito da integração europeia na década de 80 visa responder a debilidades no âmbito da economia competitiva – frente a países como Japão e Estados Unidos – de forma a fazer frente a demandas quanto à soberania política, prejudicada pela interdependência internacional crescente.

Organizações internacionais estariam, quanto à questão do meio ambiente, dando resposta muito mais satisfatórias, captando recurso e angariando patrocínios em reconhecimento ao papel exercido em relação à questão, fazendo com que a apropriação do humanitarismo global por organizações privadas venham “minando lentamente um dos últimos princípios lógicos que justificam a necessidade do Estado-Nação”.

A representação desigual dos interesses sociais, culturais e dos territórios do Estado-Nação a favor das elites encetou a crise institucional vivida hoje, na medida em que os grupos cujas identidades foram subjugadas se viram em condições de questionar o contrato histórico nacional e de mobilizar forças por sua renegociação.

“A crescente diversificação e fragmentação dos interesses sociais na sociedade em rede resultam na agregação de tais interesses sob a forma de identidades (re)construídas”, impondo ao Estado suas reivindicações e desafios. É na debilidade de responder simultaneamente à altura esses desafios que o Estado-Nação sofre o que Habermas denomina de “crise de legitimação”, ou, para Richard Sennet, “decadência do homem público”.

A identidade territorial, por sua vez, tem sido decisiva para o destino dos Estado. Em Moscou, a realidade de uma economia caótica preservou o governo de uma instabilidade pelo equilíbrio de poder entre Moscou e as elites locais e regionais. Quando esse equilíbrio foi rompido na Chechênia, irrompeu-se um conflito armado de larga repercussão na transição russa.

No caso de Estados-Nação que não abrem espaço “para uma coalizão de interesses sociais fundamentados em uma identidade (re)construída” ou não representa uma identidade importante, “uma força social política definida por determinada identidade (étnica, territorial, religiosa) pode assumir o controle do Estado, a fim de transformá-lo na expressão dessa identidade”.

Política informacional e crise da democracia

O comunalismo e o apego a formas identitárias de fazer política foi o refúgio encontrado pelo Estado para enfrentar a crise de representatividade e legitimidade a que foi constrangido pela crise do bem estar social. Sem um centro de poder bem definido, o controle social se dissipa, assim como os desafios a serem enfrentado no âmbito político. Os governos nacionais não detêm capacidade de influência sobre os fluxos de capital, comprometendo sua importância enquanto instituição.

Essas questões, que reconstroem e ressignificam a política em torno de identidades específicas, na opinião do autor, é uma contradição ao conceito de cidadania como uma ação política mais coletiva e universal.

São três as tendências apontadas por Castells como relevantes para o futuro da política informacional. Inicialmente, (I) fortalecimento da atuação política dos governos locais e regionais, por onde ocorreram “as mais poderosas tendências de legitimação da democracia durante os anos 90”, no sentido de descentralizar as políticas públicas; (II) a comunicação eletrônica como forma de aprimorar as formas de participação e horizontalidade entre os cidadãos, oportunizando as perspectivas abertas com o domínio de novas tecnologias; e (III) a mobilização política em torno de causas “não-políticas” pela via eletrônica ou outras, o “que poderia integrar o processo de reconstrução da democracia na sociedade rede.

Conclusão: A transformação social na sociedade em redefinição

A nova ordem do capital, privatizadora e redutora do papel e influência do Estado sobre a as relações sociais, reduz a legitimidade dos governos de reagirem às pressões sociais. Organizações tradicionais de trabalho, frente à internacionalização da produção e das finanças, individualização do trabalho e degeneração do emprego, perdem força enquanto entidade representativa.

Nesse contexto, o poder ganhou novas raízes além das tradicionais (Estado, empresas capitalistas, mídia corporativa, igrejas) e se difunde por meio de redes globais de riqueza, poder, informação e imagens, as quais circulam e sofrem “transformações em um sistema de geometria variável e geografia desmaterializada”, em que pese o poder tradicional ainda exercer significativo domínio sobre as pessoas.

As identidades são importantes nesse ambiente porque constroem interesses, valores e projetos, fixando suas bases “em algumas das áreas da estrutura social e, a partir daí, organizam sua resistência ou seus ataques na luta informacional pelos códigos culturais que constroem o comportamento e, consequentemente, novas instituições”. Os partidos perdem influência no sentido de que sua principal plataforma, as instituições do Estado-Nação, reduzem sua importância.

Castells afirma, por fim, que as redes de mudança social representam os embriões da nova sociedade, “germinados nos campos da história pelo poder da identidade”.

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