Eleito em 2002 sob a esperança de um novo tempo para o Brasil, os
doze primeiros meses do governo Lula pareciam concretizar a derrocada
do sonho: logo nos primeiros dois meses de gestão, em 2003, o BC
elevara os juros, já altíssimos, de 25% para 26,5%, obrigando a
elevação do superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB,
seguido do corte de 14,3 bilhões do orçamento. Houve congelamento
do poder de compra e, para completar o cenário pessimista, o
presidente apresentou ao Congresso Nacional, em abril de 2003, uma
proposta conservadora da Previdência Social.
Como resultado das decisões, o país viu minguar seu crescimento de
2,7% (últimos doze meses de FHC) para 1,3% (doze primeiros do PT),
combinado com a elevação do desemprego e a redução da renda média
do trabalhador. Apesar disso, em sentido contrário, as instituições
financeiras tiveram crescimento do seu resultado em 6,3%.
Ao final dos oito anos do mandato petista, no entanto, o país havia
se transformado. Em dezembro, os juros eram de 10,75% a.a., com taxa
real de 4,5% e o superávit caíra para 2,8% do PIB (descontando-se
os efeitos contábeis, era de 1,2%). O salário mínimo totalizava
50% de aumento entre 2003 e 2010, ultrapassando os índices
inflacionários, o crédito passara dos 25% para 45% do PIB e 12
milhões de famílias de baixíssima renda, inscritas no Programa
Bolsa Família (PBF), detinham um auxílio que variava entre 12 e 200
reais mensais.
Com tudo isso, o Brasil cresceu e tornou-se menos desigual. Em 2010,
o PIB atingira um crescimento de 7,5%, o desemprego reduzira a 5,3%,
próximo ao pleno emprego, e o nosso vergonhoso índice de Gini
sofrera uma redução de 0,58886 (2002) para 0,5304 (2010).
Diante disso, a grande questão, para André Singer, é a compreensão
sobre “o que teria acontecido nos dois quadriênios em que Lula
orientou o Brasil? (…) O país teria dado seguimento à vocação
conservadora, que afogara, no passado, as possibilidades de
desenvolvimento democrático, ou estariam certas as avaliações de
que a aceleração do crescimento e a redução da desigualdade
inauguravam etapa distinta? E, caso estivessem corretas as
perspectivas otimistas, como teria sido possível destravar a
economia e reduzir a iniquidade sem radicalização política, numa
transição quase imperceptível do viés supostamente neoliberal do
primeiro mandato para o reformismo do segundo?” (p. 12-13)
É contraditória essa fase política inaugurada a partir de 2003.
“Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e
esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno
que torna difícil a sua interpretação” (p. 9). O mandato de Lula
terá profundas implicações sobre a política nacional e
consolidará mudanças significativas na base social do Partido dos
Trabalhadores.
O roteiro sugerido por Singer para compreensão histórica do que
denomina como “lulismo” considera as seguintes variáveis:
cenário econômico internacional mais favorável a partir de 2003 e
políticas para o aquecimento do mercado interno, sem confronto com o
capital. Isso frente à crise do mensalão teria produzido o
surgimento de uma base lulista. Ele afirma que as eleições de 2006
confirmam um “realinhamento eleitoral”, expressão utilizada para
“designar a mudança de clivagens fundamentais do eleitorado, que
definem um ciclo político longo” (p. 13). Esse realinhamento é
representado pela agenda da redução da pobreza.
Como definição,
O lulismo, que emerge junto com o realinhamento, é, do meu ponto
de vista, o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração
de classe, o subproletariado, por meio de programas cujos pontos
principais foram delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza,
sobretudo onde ela é mais excruciante tanto social quanto
regionalmente, por meio da ativação do mercado interno, melhorando
o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, que se
concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses
do capital (p. 14-15).
A questão setentrional
André Singer debruça-se sobre a questão social no Brasil, cuja
dramaticidade regional representaria algo semelhante à análise
feita por Gramsci acerca da “questão meridional italiana”. O
autor resgata dados de 1976 e estudos de Paul Singer para destacar
uma parcela de brasileiros caracterizados como “sobrepopulação
trabalhadora superempobrecida permanentemente”, um subproletariado
cuja origem se deve à escravidão e que “ao longo do século XX
não consegue incorporar-se à condição proletária, reproduzindo
massa miserável permanente e regionalmente concentrada” (p.
20-21).
É esse grande contingente populacional que, contraditoriamente,
“abria e fechava simultaneamente as perspectivas de desenvolvimento
autônomo do país. Abria, pois se trata de mercado interno de que
raros países dispunham; mas fechava, uma vez que o padrão de
consumo era tão baixo que impedia a realização daquele potencial”
(p. 17). Com a miséria desse vasto subproletariado, as
possibilidades de industrialização voltada para o mercado interno
eram nulas e, sem emprego, “a massa miserável tornava-se uma
espécie de 'sobrepopulação trabalhadora superempobrecida
permanente'” (p. 18). A chave, então, para iniciar um ciclo
virtuoso, estaria em elevar as condições de existência dessa
população, localizada especialmente no Nordeste.
Perspectiva de classe e repolarização política
Em que pese as transformações
ocorridas no capitalismo a partir dos anos 50, Singer considera que a
resposta para o processo político representado pelo lulismo ainda se
encontra na questão de classe. Ele retoma um conceito gramsciano de
classe em si e
classe para si -
em
que esta detém um projeto histórico claro -, como forma de
diferenciar aspectos cruciais da subjetividade dos proletariados e
dos subproletariados. No caso destes, “que não logram se unificar
e conscientizar-se para a ação coletiva, tendem a aparecer na luta
política como massa, estruturada de fora para dentro, como acontece
em O 18 Brumário”
(p. 23-24, grifo do autor).
Dentre as teorias que buscam explicar as transformações na
estrutura social ocorridas no capitalismo no século XX, mencionadas
pelo autor, destaco a formulada por Perry Anderson, baseada em “cinco
eixos de diferenciação” das classes no capitalismo avançado:
“Em primeiro lugar, houve a
ascensão dos serviços, com declínio da classe trabalhadora manual
para cerca de ¼ da força de trabalho, sendo superada pelo número
de empregados do setor terciário, e simultaneamente, o afrouxamento
dos laços de solidariedade entre os dois segmentos. Em segundo,
aumentou a diversidade interna da própria classe trabalhadora
manual, com bons salários na ponta mais alta e longos períodos de
desemprego na mais baixa. Em terceiro, surgiram novas clivagens
etárias. O prolongamento da adolescência, com uma demora e
dificuldade para ingressar no mercado profissional, gerou cultura
juvenil autônoma. Simultaneamente, a longevidade incrementou o peso
dos aposentados na população, restando aos trabalhadores da
“segunda idade” carregar sozinhos pesado fardo econômico. Em
quarto, o incremento do número de mulheres no mercado de trabalho
fez crescer a importância da clivagem por gênero, tornando as
reivindicações femininas pauta obrigatória das lutas trabalhistas.
Em quinto, o maior número de imigrantes “erodiu a cultura de
solidariedade na população trabalhadora”. O resultado de tudo
isso foi uma intensa fragmentação da “antiga” classe operária”
(p. 25).
Nesse sentido, o livro não é o único a explicar o processo
histórico representado pelo governo Lula através da categoria
“classe”. Sua originalidade reside na “sugestão de que o
deslocamento do subproletariado, uma fração de classe com
importante peso eleitoral, provocou o surgimento do lulismo” (p.
28).
O autor, neste capítulo, busca argumentar que “o lulismo faz uma
rearticulação ideológica, que tira centralidade do conflito entre
esquerda e direita, mas reconstrói uma ideologia a partir do
conflito entre ricos e pobres” (p. 32), e é por isso que a
“divisão lulista tem uma poderosa repercussão regional, e o
Norte, que é mais pobre, concentra o voto lulista” (p. 35). Nesse
sentido, “o lulismo diminui a polarização esquerda/direita porque
busca equilibrar as classes fundamentais e esvazia posições que
pretendem representá-las na esfera política” (p.35).
Políticas de massas e revolução passiva
Singer menciona as ideias de Werneck Vianna, para quem o Brasil “pode
ser caracterizado como o lugar por excelência da revolução
passiva” (p. 38), que significa a mudança que vem pelo alto, sem a
participação massiva do povo. Para este, o país adotou uma
revolução passiva às avessas, pois foi o partido surgido da base o
responsável acionar o freio. Quer dizer, “em lugar de o partido
conservador cooptar os quadros revolucionários para executar de
maneira controlada as alterações renovadoras, na prática lulista
os elementos conservadores é que foram cooptados pelos dirigentes de
origem progressista” (p. 38) para tal fim.
Tornando esse quadro ainda mais complexo, “a contar de 2005-06, o
setor 'atrasado' da sociedade brasileira, a saber, a massa rural e
semirrural do Norte, que não encontrava lugar nas relações de
mercado capitalistas 'normais', se desliga do bloco histórico ao
qual sempre esteve vinculada, ultimamente representado pelo PFL-DEM,
aderindo ao lulismo” (p. 40).
Embora
alguns autores, como Jessé de Souza, considerem que em uma
“'sociedade perifericamente moderna como a brasileira' esse é o
conflito central [superação da pobreza], e não o que opõe
trabalhadores e burgueses” (p. 43), André Singer refuta essa ideia
por ela retirar o capitalismo de cena, dando “centralidade ao
conflito inclusão
versus exclusão”
(p. 43, grifo do autor). Para este, “a oposição entre o capital e
o trabalho define o destino de toda a época em que vivemos, sendo
necessário integrar o problema da exclusão ao conjunto das relações
de produção, se quisermos desvendar a totalidade” (p. 43).
Portanto, essa “vasta fração de classe que luta por aceder ao
mundo do trabalho formal em regime capitalista, com todos os defeitos
que ele possui, tendo estado historicamente dele excluída” (p. 43)
condiciona – mas não encerra – o conflito de classes no país.
Por isso a “questão setentrional” no Brasil é tão importante,
ao considerar que essa fração de classe encontra-se
majoritariamente no Nordeste.
Raízes sociais e ideológicas do lulismo
O subproletariado, conforme dito anteriormente, constituiu-se
enquanto “fração de classe que, embora majoritária, não
consegue construir desde baixo as próprias formas de organização”
(p. 51-52) e é por esse motivo que ela somente aparece no plano
político com a ascensão de Lula ao poder. A expectativa de um
Estado forte de tal modo que promovesse a redução da desigualdade
sem ameaçar a ordem dominante foram os elementos que, combinados,
empolgaram o subproletariado.
Esta camada da população passou incólume sobre a avalanche do
mensalão, quando a rejeição ao presidente desdobrou-se entre as
camadas médias “em nítida preferência pelo candidato de oposição
à Presidência em 2006” (p. 52-53). Concretamente, “'entre os
brasileiros de escolaridade superior, a reprovação a Lula deu um
salto de dezesseis pontos percentuais, passando de 24% para 40%
hoje', escrevia a Folha de S. Paulo em 23 de outubro de 2005” (p.
53). Os mais ricos optavam maciçamente pelo candidato tucano, algo
que se invertia quanto aos que ganhavam até cinco salários mínimos.
André
Singer destaca uma mudança de comportamento eleitoral da base da
pirâmide social, de 1989 a 2006, que foi decisiva para a origem do
lulismo. Esta parcela populacional possui um histórico refratário
ao comportamento político da esquerda, sendo, inclusive, em maior
intensidade do que os ricos, contrária às greves. Segundo Singer,
“os eleitores mais pobres buscariam a redução da desigualdade, da
qual teriam consciência por meio da intervenção direta do Estado,
evitando
movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem”
(p. 58, grifo do autor). Sugere, então, que para estes eleitores,
“a clivagem entre esquerda e
direita não estaria em ser contra a redução da desigualdade ou a
favor desta, e sim em como diminuí-la. Identificada como opção que
punha a ordem em risco, a esquerda era preterida em benefício de
solução pelo alto, de uma autoridade constituída que pudesse
proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o
sentido da adesão intuitiva à direita no espectro ideológico”
(p. 58).
As bases materiais do voto
A partir das pesquisas realizadas ainda no início do governo já era
possível notar “nítida mudança nas atitudes dos eleitores de
classe popular, apontando para o aumento da autoestima e da
confiança, de que o Brasil iria melhorar, agora que as políticas de
governo passariam a ter outra intenção e finalidades: um governo
diferente, com gente diferente, fazendo coisas diferentes” (p. 63).
O aumento do consumo seria o fundamento dessa aprovação.
Singer elenca algumas variáveis que permitiram elevar o poder de
compra, como o primeiro reajuste importante do salário mínimo, em
8,2%, em maio de 2005; a criação do Bolsa-Família e a instituição
do crédito consignado. Programas focalizados adensaram ainda mais os
de caráter geral, como o Luz Para Todos, as clínicas dentárias
para baixa renda, regularização das propriedades quilombolas,
construção de cisternas no semiárido, dentre outros. Em junho de
2006, o Datafolha apresentou dados que demonstravam “a influência
de ser atendido por programa governamental sobre disposição de
reeleger o presidente. Os números revelam que a intenção de voto
em Lula pulava de 39%, na média, para 62%, quando o entrevistado
participava de algum programa federal” (p. 68).
Numa síntese, a diminuição da pobreza a partir de 2004, ano que
coincide com o da elevação da economia e do emprego foi
proporcionado pelo “tripé formado pelo Bolsa Família, pelo
salário mínimo e pela expansão do crédito, somado aos referidos
programas específicos, e com o pano de fundo da diminuição de
preços da cesta básica” (p. 68).
Fração de classe e ideologia
André Singer define o subproletariado como uma classe cujos membros
“oferecem sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem
esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua
reprodução em condições normais” (p. 77). É um contingente
populacional numeroso, abarcando desde empregados domésticos,
assalariados de pequenos produtores diretos a trabalhadores
destituídos das mínimas condições de participar da luta de
classes. É o seu tamanho que o torna “centro da equação
eleitoral brasileira” (p. 77), destacando-se o Nordeste com o
coração desse subproletariado.
É a tal fração de classe que o lulismo, ao estabelecer um programa
de combate à pobreza respeitando a ordem estabelecida, se dirige
majoritariamente. Não é por menos que o governo conservou os marcos
da política macroeconômica de Fernando Henrique, representada por
três pilares: metas de inflação, câmbio flutuante e superávit
primário nas contas públicas. Ao permitir a “elevação do
superávit primário para 4,25% do PIB, a concessão da independência
operacional ao BC (…) e a inexistência de controle sobre a entrada
e a saída de capitais [essas medidas] constituíram o meio adequado
para assegurar elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres:
a manutenção da ordem” (p. 74).
Essa preferência dos mais pobres pelo que se poderia chamar, na
opinião de Singer, de “conservadorismo popular” é uma das
consequências de que “apesar do sucesso do PT e da CUT, a esquerda
não foi capaz de dar direção ao subproletariado, fração de
classe particularmente difícil de organizar” (p. 82). Segundo ele,
“o subproletariado, a menos que atraído por propostas como a do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tende a ser
politicamente constituído desde cima, como observou Marx a respeito
dos camponeses da França em 1848” (p. 79).
A segunda alma do Partido dos Trabalhadores
No diagnóstico sobre a virada que tem início a partir de 2002, é
fundamental se levar em contar a origem radical do PT. Em meio ao
“signo da 'nova sociabilidade' forjada na oposição à ditadura”
(p. 88), “numa cultura política tingida pela ambiguidade e pela
conciliação de elites” (p. 88) nascia o Partido dos
Trabalhadores. Seu elemento diferenciador encontrava-se no programa,
que “tinha o sentido de negar as limitações das fases anteriores
(p. 88), marcadas pelos métodos eleitoreiros. Seu objetivo era a
construção de uma nova sociedade.
A singularidade da experiência petista encontra resposta no ambiente
ideológico global vivenciado entre o final da década de 70 e a
seguinte, quando “a reação neoliberal começava a desmontar o que
fora construído no pós-guerra” (p. 90) fomentando um ambiente
favorável ao avanço dos valores do capitalismo. Em 1991, durante
seu 1º Congresso, o partido ajustava suas resoluções de maneira a
combinar a luta de massas com a ação de governo enquanto tarefas
centrais na sua edificação.
Esse PT original representaria, portanto, conforme afirma André
Singer, a “alma do Sion” (em alusão ao local onde o partido fora
fundado), com valores, programas e ideias majoritariamente
alternativos ao capitalismo.
A Carta ao Povo Brasileiro, divulgada em 22 de junho de 2002, é
chave para compreender “a irrupção da segunda alma do PT” (p.
95). Embora tenha vindo à luz somente nesse período, “seus fios
podem ser rastreados, no mínimo, até a derrota de 1989” (p. 95) e
surgiu sem grandes dificuldades em nome da vitória eleitoral.
Após
o lançamento desse documento, o partido realizou uma reunião no
Anhembi, onde aprovou um documento em que substitui a orientação de
“confronto com os 'humores do capital financeiro globalizado', que
havia sido aprovado em dezembro de 2001” (p. 96), por outro em que
afirma “que o futuro governo iria 'preservar o superávit primário
o quanto for necessário, de maneira a não permitir que ocorra um
aumento da dívida interna em relação ao PIB, o que poderia
destruir a confiança na capacidade do governo cumprir os seus
compromissos', seguindo pari
passu
o que fora anunciado na carta [ao povo brasileiro] um mês antes”
(p. 97). Responsabilidade fiscal, estabilidade das contas públicas,
solidez nos fundamentos econômicos e respeito aos contratos passam à
composição do discurso.
André Singer prossegue na comparação entre as duas almas,
“A alma do Anhembi, expressa
no programa “Lula 2002”, compromete-se com a estabilidade e atira
as propostas de mudança radical ao esquecimento. Enquanto a alma do
Sion, poucos meses antes, insistia na necessidade de 'operar uma
efetiva ruptura global com o modelo existente', a do Anhembi toma
como suas as 'conquistas' do período neoliberal: 'a estabilidade e o
controle das contas públicas e da inflação são, como sempre
foram, aspiração de todos os brasileiros', afirma” (p. 97)
Duas almas e uma síntese. Provisória?
O autor sustenta que a transformação na base social de apoio
conduziu a um “impacto na alma do PT, como na de qualquer outro
partido em que acontecesse” (p. 118). Nesse caso, “o efeito foi
dar carne e osso ao espírito do Anhembi” (p. 118). O que parecia
ser uma flexão tática, no caso da “Carta ao Povo Brasileiro”,
demonstrou ser uma medida de perspectiva estratégica do partido.
Em relação aos apoiadores do PT, o Instituto Datafolha, em 2010,
verificou que “a proporção de (...) situados à esquerda teria se
reduzido para 32%, ao passo que à direita ela teria subido para 35%
e ao centro para 16%” (p. 118). O partido deixara de ter uma base
com predominância de esquerda para outra em que, somados os de
centro e de direita, deixava-a em minoria.
Converge com essa análise afirmar que, se até 2002 o espírito do
Sion era o dominante no partido, este, a partir de então, “resvala
para um segundo plano, encerrando o ciclo radical aberto com a
derrota do populismo em 1964” (p. 119). Contraditoriamente,
“aspecto peculiar do modo petista de vida até 2012, ao menos, é
que o espírito do Anhembi, embora dominante, não suprimiu o de
Sion: convivem lado a lado, como se um quisesse desconhecer a
existência do outro. O PT nunca reviu as posições históricas”
(p. 120).
Apesar da força detida pelos compromissos assumidos na Carta ao Povo
Brasileiro, Singer defende que, em parte, o PT fez avançar seu
projeto de nação. Segundo ele, “os dois mandatos de Lula à
frente do Executivo formaram síntese contraditória das duas almas
que hoje habitam o PT” (p. 122). A ambiguidade reside no fato de
que a gestão lulista foi capaz de “promover, simultaneamente,
políticas que beneficiam o capital e a inclusão dos mais pobres,
com melhora relativa na situação dos trabalhadores, que permitiu a
convivência dos espíritos do Anhembi e do Sion” (p. 122).
O sonho rooseveltiano do segundo mandato
Há
um sentido, que é alavancado a partir de 2007, resultado do
crescimento acelerado, da ampliação do emprego e do enfrentamento à
crise financeira de 2008, somados ao combate à pobreza, de que o
mandato do presidente Lula instaurou no Brasil um ambiente
rooseveltiano, consolidando um realinhamento eleitoral que se fixou
como marco regulatório da política brasileira e assim será por
longo período de tempo – como fora o New
Deal
do presidente americano.
Singer
recorda os discursos engendrados pelas candidaturas à Presidência
da República de Dilma Roussef (PT), José Serra (PSDB) e Marina
Silva (PV) e as similaridades em relação às políticas
empreendidas por Lula. No que se relaciona a um dos nossos mais
agudos problemas sociais, por exemplo, “todos os postulantes (…)
estiveram envolvidos no movimento rooseveltiano de eliminar, num
'curto espaço de alguns anos', o atraso no país no que diz respeito
à pobreza” (p. 128). Quanto ao Bolsa Família, José Serra “propôs
a dobrar
o número de famílias atendidas pelo programa. Ninguém falou em
diminuir ou eliminar o benefício” (p. 127, grifo do autor).
A seguir, o autor buscará “mapear o solo material e político da
agenda lulista ao cabo de dois mandatos presidenciais” (p. 129)
analisando os avanços no combate à pobreza e à desigualdade, as
contendas macroeconômicas que limitaram ou promoveram avanços no
projeto e as relações de classe contidas no caminho. Além disso,
serão analisados as classes e partidos comprometidos com os
objetivos da redução da pobreza e da desigualdade.
A pobreza monetária cai rápido; a desigualdade, devagar
O New Deal brasileiro se expressaria na forte redução da pobreza,
marca inconfundível da nossa formação social. Saíram da pobreza
absoluta, entre os anos de 2003 e 2010, aproximadamente 20 milhões
de cidadãos, o que representa um marco histórico no desenvolvimento
nacional. No entanto, apesar do intenso combate à exclusão, o ritmo
da queda na desigualdade é muito mais lento. Para Singer, isso
indica que “o lulismo pode produzir a erradicação da pobreza
monetária absoluta 'num curto espaço de alguns anos', mas não uma
sociedade em que o padrão de vida seja 'reconhecidamente similar' no
mesmo período” (p. 143). Os ricos continuarão a acumular mais
riquezas e ainda haverá pobres no país.
Diferente
dos Estados Unidos, que partiu de um nível de desigualdade, durante
o New Deal, muito inferior ao nosso, no Brasil “o que está no
horizonte é, por assim dizer, voltar
ao ponto interrompido pelo golpe de 1964 [de
índice de Gini], muito distante, portanto, de um padrão
'reconhecidamente similar'” (p. 142).
A suave inflexão do segundo mandato
Aqui, o autor desenvolve uma sistematização temporal a partir de 3
fases nas quais “houve modificações no peso relativo dos fatores
que compuseram a ordem lulista (…) cuja diferenciação explica o
fator de causar impressão tão vária, para tomar os extremos, os
primeiros e os últimos seis meses do governo Lula” (p. 143).
Na
primeira fase, de 2003 a 2005, o caráter neoliberal era
predominante, sobressaindo “a contenção da despesa pública, a
elevação dos juros, a manutenção do câmbio flutuante, o quase
congelamento do salário mínimo e a reforma previdência com redução
de benefícios” (p. 144). Por outro lado, nesse período surgiram o
Bolsa Família (setembro de 2003), o crédito consignado e, a partir
de maio de 2005, a trajetória ascendente de valorização do salário
mínimo. O boom
das
commodities,
num cenário econômico que começava a tornar-se favorável,
contribuiu para o processo de ativação do mercado interno de massa
no país.
Entre 2006 e 2008, inaugura-se uma nova fase no governo com a
nomeação de Guido Mantega para o Ministério da Fazenda,
“favorecendo a química com menos neoliberalismo e mais
desenvolvimentismo que iria, depois, caracterizar todo o segundo
mandato” (p. 146). Esse período foi marcado por uma maior
valorização do salário mínimo, por gastos públicos mais
flexibilizados, taxa de juros em descenso e forte ampliação do
emprego (40% a mais de novos postos no segundo mandato em comparação
ao primeiro). O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
lançado em janeiro de 2007, “foi o terceiro dado relevante da
segunda fase junto com a valorização do SM e a continuidade de
expansão do crédito” (p. 149).
Com a queda do Lehman Brothers em setembro de 2008, inaugura-se a
terceira fase, que se prolonga até o ano de 2010. A marca desse
período foi que “a desorganização das finanças mundiais deixou
ao setor público de cada país o encargo de impedir que houvesse
ciclo de longa depressão econômica” (p. 152). A resposta do
governo Lula foi pela ampliação do consumo popular “mediante
aumentos salário mínimo, das transferências de renda, das
desonerações fiscais e do alongamento do crediário” (p. 152). O
símbolo desse período foi o Programa Minha Casa Minha Vida, que, ao
aquecer o mercado da construção civil, por um lado conteve o
desemprego e promoveu ampliação dos postos de trabalho e, por
outro, alavancou a habitação popular.
Coalizões de classe
Para Singer, o “lulismo implica reordenamento das relações de
classe” (p. 155), num ambiente em que há “permanente processo de
embate entre posições divergentes e arbitragem por parte do
Executivo” (p. 157). Em síntese, a luta de classes permanece, mas
encontra “um ponto de fuga (…) no funcionamento do lulismo. O
sucesso do lulismo envolve uma solução pelo alto, criando
simultaneamente uma despolarização e uma repolarização da
política” (p. 157). O objetivo dessa relação de equilíbrio
entre capital e trabalho não se restringe somente à manutenção da
ordem, mas também de “garantir ao subproletariado duas condições
fundamentais: inflação baixa e aumento do poder de consumo” (p.
160)
Será o lulismo um reformismo fraco?
Na parte final do livro, André Singer indaga sobre a duração do
lulismo, as transformações que ele acarretará caso se mantenha, a
reordenação dos partidos e ideologias com a sua vigência,
afirmando que “prescrutar o futuro parece a melhor maneira de
concluir a análise da situação presente” (p. 169).
No
que tange à força eleitoral, quando observado o desempenho da
candidata Dilma Roussef, indicada por Lula, é possível notar que
sua votação em 2010 “reproduziu o esquema social e regionalmente
polarizado de 2006” (p. 170), denotando “a vitalidade do lulismo”
(p. 170). Quanto às commodities, fator de influência significativa
quanto à conjuntura internacional, que permitiram elevar o balanço
comercial do país, “não foi a melhora das condições
macroeconômicas que fez alguma 'sobra' chegar aos pobres, como
parece acreditar parte dos observadores” (p. 178), já que mesmo
sem a retomada do crescimento, “houve um
aumento da parcela do PIB destinada aos mais pobres, de
tal forma que, quando a economia se aqueceu, iria encontrar um
mercado interno ativado, constituído pelos beneficiários do Bolsa
Família e do crédito consignado, aos quais viria a se agregar a
valorização do salário mínimo a partir de 2005” (p. 179, grifo
do autor).
Segundo André Singer,
“Foi a fortuna da conjuntura
internacional associada à virtù de apostar na redução da pobreza
com ativação do mercado interno que produziu o suporte material do
lulismo. Assim, a expansão mundial acabou por potencializar o
mercado interno de regiões historicamente deprimidas, sobretudo o
Nordeste, o que não aconteceria caso certas medidas não tivessem
sido tomadas no momento propício. No segundo mandato, com os juros
em queda, o governo passou a ter maior largueza de receita,
permitindo recomposição dos gastos em investimentos e com pessoal,
comprimidos na primeira fase. À medida que o PIB crescia, aumentava
também a quantidade de recursos transferidos para os mais pobres,
como foi o caso da valorização do salário mínimo e do próprio
Bolsa Família no segundo mandato. Entretanto, o impulso inicial fora
dado anteriormente” (p.
179).
O lulismo seria, na realidade, um reformismo fraco, e não um
prolongamento completo das políticas neoliberais, cuja marca é a
acentuação da desigualdade. Quanto a isso, a redução foi nítida
com a renda dos 10% mais pobres crescendo 456% que a dos 10% mais
ricos.
Caso a alma do Sion tivesse prevalecido na orientação política do
governo, a perspectiva de mudanças, balizada nos documentos do
partido até 2001, teriam como alguns fundamentos a “garantia do
trabalho agrícola por meio da distribuição de terras até a
tributação do patrimônio das grandes empresas e fortunas para
criar um Fundo Nacional de Solidariedade que financiasse projetos
apresentados por organizações comunitárias” (p. 187), como
também a “diminuição da jornada de trabalho para quarenta horas
sem corte de salários, criação de Programa de Garantia de Renda
Mínima, revisão das privatizações, convocação dos fóruns das
cadeiras produtivas”, medidas classificadas por Singer como
reformas fortes.
Para o autor, o Partido dos Trabalhadores foi capaz de promover, em
baixa dosagem, sem confrontar com o capital, algumas das reformas que
propunha anteriormente, a despeito da “transferência de renda aos
mais pobres, ampliação do crédito, valorização do salário
mínimo, tudo isso resultando em aumento do emprego formal” (p.
189). Segundo ele,
“O que estamos vendo, portanto, é um ciclo reformista de
redução da pobreza e da desigualdade, porém um ciclo lento,
levando-se em consideração que a pobreza e a desigualdade eram e
continuam sendo imensas no Brasil. Isso explica o aspecto ideológico
do imaginário do New Deal que se instalou no país, pois não está
no horizonte real do reformismo fraco produzir, num 'curto espaço de
alguns anos', um padrão de vida geral 'decente' e 'similar'. Para
isso, seria necessário um reformismo forte, ou ter tido, como nos
EUA, outro ponto de partida” (p.
195-196).
Nota final: saem os burgueses e proletários; entram ricos e
pobres
Na última parte do livro, André Singer destaca a migração do
campo da luta política do âmbito da dualidade entre burgueses e
proletários para a que contrapõe ricos e pobres. Segundo ele, “o
lulismo tem um pertencimento de classe específico, cuja prioridade,
conforme vimos, é a diminuição da pobreza, e não da desigualdade”
(p. 200). E é por esse motivo que “o reformismo fraco é o projeto
adotado pelo bloco no poder. Expansão do mercado interno, com
integração do subproletariado ao proletariado via emprego (mesmo
que precário), consumo e crédito, sem reformas anticapitalistas, e
com lenta queda da desigualdade como subproduto, é o que se deve
esperar” (p. 200).
Nesse embate, são os setores da classe média tradicional os mais
descontentes pela ascensão do subproletariado. Com os setores
populares “em locais antes exclusivos, como aeroportos, diminui o
status relativo de quem antes tinha neles exclusividade. No
espaço público, a classe média tradicional brasileira começa a
ser tratada como igual, e não gosta da experiência” (p. 205, grifo do autor). Os
donos do capital, no entanto, estão tranquilos. Ainda detêm lojas
exclusivas, as suas empresas registram lucratividade elevada e o
barateamento do dólar permitiu-lhes viajar no exterior e adquirir
produtos mais baratos de lá.
Por fim, a mudança do espectro da luta política “carrega um
paradoxo: o de que a esquerda no Brasil ganhou e perdeu, ao mesmo
tempo, com a ascensão do lulismo. No momento em que um projeto
reformista, mesmo fraco, avança na redução da sobrepopulação
trabalhadora superempobrecida permanente, aumentando o contingente
proletário, a luta ideológica parece recuar para um estágio
anterior ao conflito capital/trabalho” (p. 219). O desafio é
compreender se “ainda que tênue, ele poderá colocar, se tiver a
durabilidade prevista neste livro, as contradições brasileiras em
degrau superior àquele que conteve a história do país até o
início do século XXI” (p. 220).
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