terça-feira, 26 de novembro de 2013

Cidadania no Brasil, o longo caminho (José Murilo de Carvalho, 2001)

Palavras-chave: direitos sociais, direitos políticos, direitos civis, cidadão em negativo, cidadania regulada, identidades


Resumo: Quando José Murilo de Carvalho lançou Cidadania no Brasil - O Longo Caminho, em 2001, a desesperança era um traço característico dos brasileiros. Envolto em crises econômicas das quais era o primeiro a entrar e o último a sair, o país estava entre os mais desiguais do planeta e aplicava políticas sociais com a convicção de que o desemprego seria o caminho natural e irreversível para uma grande fatia da população. Pouco mais de uma década de Constituição Cidadã, quando os direitos sociais, civis e políticos promulgados resultaram em grande otimismo ao final década de 80, a vida real se impôs e com ela os problemas e vícios que a cultura política brasileira herdou de longos anos de personalismo, clientelismo e corporativismo.

As dificuldades são ainda maiores pela inversão pela qual o país passou quanto à obtenção de direitos. Enquanto na Inglaterra os direitos civis foram pioneiros e abriram caminho para a conquista dos direitos políticos, e estes, por conseguinte, para os direitos sociais, no Brasil os direitos políticos e civis tiveram trajetórias curtas e inconstantes, diferentemente dos direitos sociais, que a partir da década de 30 ganharam ritmo ascendente. Neste período, sem liberdades democráticas, organizações de base social consistente e partidos políticos capazes de debater sem amarras no Congresso Nacional, o resultado foi o fortalecimento entre nós da cultura da estatolatria.

Estimulada por Vargas, o presidente que criou, usou e abusou da gramática política corporativista ao atrair os trabalhadores urbanos para seu projeto de poder ao estilo patriarcal, a cultura da estatolatria gerou o sentimento de supremacia do Estado sobre o domínio das demandas da sociedade. Comunistas e mesmo integralistas foram perseguidos em meio ao objetivo de transferir o domínio das disputas políticas para as negociações no âmbito do governo federal.

Voltando ainda mais no tempo, registra-se na formação social do país os desequilíbrios e aspectos da cultura política enraizada entre nós, de negação à cidadania a grandes parcelas da população e a escravidão, especificamente, como o elemento de maior peso à promoção dos direitos. Com a abolição da escravatura, em 1888, os governos se negaram a promover alternativas que permitissem a inclusão à cidadania via educação, moradia, emprego, dentre outros, restando aos negros, ainda hoje, o fardo de ocuparem em condições de grande disparidade as estatísticas sociais.

O livro de José Murilo de Carvalho é um estudo rico para compreensão da qualidade das políticas sociais adotadas pelo país nos últimos anos, as quais buscam enfrentar e superar nossas dívidas sociais mais profundas. É também desafiante na medida em que nos remete à necessidade de enfrentar a cultura política estabelecida e incorporada por gerações dada a relação de dependência frente ao Estado e a fragilidade das bases sociais do movimento social e popular em geral.

Introdução: Mapa da viagem

A Constituição de 1988 foi legada ao país nos marcos do esforço de superação do entulho autoritário e sob a perspectiva de se inaugurar uma nova página na nossa história, com a consolidação de novos direitos sociais, políticos e civis naquilo que se convencionou chamar de Constituição Cidadã. Carvalho registra o episódio destacando a ilusão de que “a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional” (p. 7).

É certo de que se avançou na liberdade, na manifestação do pensamento, na ação política e sindical, na participação em geral, no direito ao voto, mas as limitações à cidadania eram claras. Em outras áreas sociais houve uma estagnação, consequência principalmente da “crescente dependência do país em relação à ordem econômica internacional” (p. 8), algo que influenciava a sociedade de duas maneiras: pelo sofrimento humano que os problemas sociais provocam e pelas tentações políticas em prol do retrocesso frente às conquistas alcançadas.

Antes de desenvolver uma abordagem histórica sobre o tema, destaca-se o papel exercido pela cidadania segundo o autor, que afirma que,

“(...) O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos [civis, políticos e sociais]. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. (...)” (p. 9)

Nesse sentido, são direitos civis aqueles relacionados aos direitos à liberdade, à vida, à propriedade e à igualdade perante a lei, garantindo “as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo” (p. 9). Os direitos políticos consistem na “capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado” (p. 9). Reconhecido em geral pelo direito do voto, suas principais instituições são os partidos e o parlamento livre e representativo. Já os direitos sociais “garantem a participação na riqueza coletiva” (p. 10) e são identificados através do direito à educação, ao trabalho, à aposentadoria, à saúde, dentre outros.

Primeiros passos

José Murilo de Carvalho desenvolve uma divisão periódica atípica para classificar a evolução da cidadania no país. Seguindo o seu roteiro, serão destrinchadas inicialmente a fase colonial e a seguir a do período imperial e Primeira República.

O peso do passado (1500-1822)

Em 1822, com a independência, o Brasil herdara uma tradição de baixo grau de civismo. Se por um lado, o país consolidara uma unidade territorial, linguística, cultural e religiosa, por outro, a existência de população em sua maior parte analfabeta, em uma sociedade escravocrata, absolutista, de economia monocultora e latifundiária impunha ao novo país um significativo fardo a ser enfrentado. O traço essencial da economia e da sociedade era representado pelo latifúndio monocultor e exportador de base escravista.

Quanto à cidadania, a escravidão foi seu fator mais prejudicial. Estima-se em 3 milhões de escravos importados pelo Brasil até 1822, num peso tal que mesmos os cativos, quando libertos, adquiriam escravos, numa “sociedade colonial [que] era escravista de alto a baixo” (p. 20). Desse modo,

“Escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos civis básicos à integridade física (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos extremos, à própria vida, já que a lei os considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais. (...)” (p. 21)

A proteção da justiça dependia de decisões que muitas vezes eram dadas pela metrópole, distante milhares de quilômetros da população. Ao cidadão comum, restava a proteção dos grandes proprietários ou o arbítrio dos poderosos. Escravos e mulheres integravam a jurisdição privada dos senhores, sem o acesso à justiça. Àqueles “restava o recurso da fuga e da formação de quilombos” (p. 22), recurso precário pelo sistemático combate empreendido pelo governo ou por particulares a seu serviço.

Poder público e grandes proprietários representavam, por vezes, uma simbiose de conluios e interesses interligados cuja combinação se dava em detrimento da grande maioria da população. Diante disso, “não existia de verdade um poder que pudesse ser chamado de público, isto é, que pudesse ser a garantia da igualdade de todos perante a lei, que pudesse ser a garantia dos direitos civis” (p. 22).

Apesar do grau de dominação, a população não estava impassiva. No século XVIII, quatros revoltas políticas estremeceram o ambiente político, sendo a Inconfidência Mineira em 1798 a de maior politização, pois inspirada “no ideário iluminista do século XVIII e no exemplo da independência das colônias da América do Norte” (p. 24). Seus líderes faziam parte do círculo dominante (militares, fazendeiros, padres, poetas e magistrados).

A Revolta dos Alfaiates (1798), na Bahia, foi a mais popular e a “única envolvendo militares de baixa patente, artesãos e escravos”. O alvo principal era a escravidão e a dominação dos brancos, influenciada pela Revolução Francesa. Ainda no período colonial, em Pernambuco os rebeldes de 1817 “proclamaram uma república independente que incluía, além de Pernambuco, as capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte” (p. 25). Estiveram à frente do governo por dois meses e alguns dos seus líderes foram fuzilados num período em que “apareceram com mais clareza alguns traços de uma nascente consciência de direitos sociais e políticos” (p. 25).

O período colonial chegara ao fim com uma imensa população à margem dos “direitos civis e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade” (p. 25). A identificação dos cidadãos se dava com alguma intensidade em nível regional, não com o país.

1822: os direitos políticos saem na frente

O Brasil torna-se independente numa caracterização diferente da dos demais países latino-americanos. Aqui a principal característica “foi a negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora o príncipe D. Pedro” (p. 26). A participação da população foi secundária, legitimando “por meio de manifestações públicas a ação dos líderes, inclusive a de D. Pedro” (p. 26).

Com a Constituição de 1824, resultante de uma combinação de ideias de constituições europeias, foram estabelecidos os poderes Executivo, Legislativo (Câmara e Senado) e o Judiciário. Além desses, fora criado o Poder Moderador, um quarto poder de uso privativo do imperador cuja “principal atribuição (…) era a livre nomeação dos ministros de Estado, independentemente da opinião do Legislativo” (p. 29).

A regulação dos direitos políticos viria com a nossa primeira Carta Magna, que estabelecera o voto a “todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem renda mínima de 100 mil-réis” (p. 30) para os quais o voto era obrigatório, mesmo para os analfabetos. Segundo José Murilo de Carvalho, possivelmente “nenhum país europeu da época tivesse legislação tão liberal”. Dentre os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição, um percentual superior a “85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal” (p. 31), sendo boa parte desses grandes proprietários rurais em um país em que mais de 90% da população residia nas áreas rurais.

O direito do voto foi instituído em um país que “não tinha (…) noção do que fosse um governo representativo, do que significava o ato de escolher alguém como seu representante político” (p. 31), onde mesmo o patriotismo era limitado e, muitas vezes, restrito ao ódio ao português. A disputa eleitoral representava “uma ação estritamente relacionada com as lutas locais” (p. 35) em que o “voto era um ato de obediência forçada ou, na melhor das hipóteses, um ato de lealdade e de gratidão” (p. 35).

Durante o Império, havia outras formas de interação da sociedade com o Estado, como o serviço do júri, do qual participavam, aproximadamente, 80 mil pessoas em 1870. O serviço militar no Exército e na Marinha constituíam experiências negativas, visto o “caráter violento do recrutamento, o serviço prolongado, a vida dura do quartel, de que fazia parte o castigo físico” (p. 37). Foi com a Guerra do Paraguai que despertou-se uma identidade nacional, momento em que “de repente havia um estrangeiro inimigo que, por oposição, gerava o sentimento de identidade brasileira” (p. 38). O confronto mobilizou aproximadamente 135 mil brasileiros.

1881: O tropeço

A Câmara dos Deputados introduziu, no ano de 1881, o voto direto, extinguindo o primeiro turno das eleições que definiam os votantes (um estágio superior em relação aos eleitores) e aumentando de 100 para 200 mil-réis a renda mínima para ser considerado eleitor (piso que embora não fosse considerado alto, veio acompanhado de tal controle que acabou influenciando o quorum). A queda na participação foi brusca. Se em 1872, 13% da população livre havia exercido o direito do voto, em 1886 esse percentual caíra para 0,8%. O Brasil perdera a vantagem que havia conquistado em 1824 frente aos países da Europa.

Com a Constituição republicana de 1891, fora eliminada a exigência dos 200 mil-réis como renda mínima e a exclusão dos analfabetos, estabelecida em 1881, foi preservada. Mulheres, mendigos, soldados e membros das ordens religiosas também continuavam excluídos do direito ao sufrágio. A participação dos brasileiros no processo eleitoral continuaria baixo por décadas, quando a redemocratização, em 1945, inauguraria uma nova etapa quanto aos direitos políticos.

Quanto à representação política, entre 1889 e 1930 não houve grandes mudança. José Murilo de Carvalho explica que as mudanças estabelecidas a partir da nova Constituição,

“(...) Ela introduziu a federação de acordo com o modelo dos Estados Unidos. Os presidentes dos estados (antigas províncias) passaram a ser eleitos pela população. A descentralização tinha o efeito positivo de aproximar o governo da população via eleição de presidentes de estado e prefeitos. Mas a aproximação se deu sobretudo com as elites locais. A descentralização facilitou a formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em partidos únicos, também estaduais. Nos casos de maior êxito, essas oligarquias conseguiram envolver todos os mandões locais, bloqueando qualquer tentativa de oposição política (...)” (p. 41).

A Primeira República, conhecida como “República dos Coronéis” representou o controle de dois grandes estados brasileiros, Minas Gerais e São Paulo, sobre um longo período da vida política nacional, encerrado somente em 1930. O coronelismo baseava-se na aliança dos chefes políticos locais, os coronéis remanescentes do Império, com os presidentes dos estados e destes com o presidente da República, configurando um “paraíso das oligarquias, [onde] as práticas eleitorais fraudulentas não podiam desaparecer” (p. 41).

Direitos civis só na lei

Do ponto de vista da cidadania, foi nos direitos civis onde a escravidão mais pesou. Herdou-se do período colonial “a escravidão, que negava a condição humana do escravo, (…) a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e (…) um Estado comprometido com o poder privado. (p. 45). Quanto à escravidão, sua abolição só viria em 1888, enquanto o poder da grande fazenda demonstra solidez em algumas áreas do país e a desprivatização do poder pública ainda representa um desafio às forças políticas.

Em estados como a Bahia, Minas Gerais e em outras províncias, a força da subjetividade escravista era tal que era possível se encontrar libertos com seus próprios escravos. Dados apresentados pelo autor indicam que quase 80% de ex-escravos na Bahia detinham cativos. Para o autor,

“Esses dados são perturbadores. Significam que os valores da escravidão eram aceitos por quase toda a sociedade. Mesmo os escravos por quase toda a sociedade. Mesmo os escravos, embora lutassem pela própria liberdade, embora repudiassem a escravidão, uma vez libertos admitiam escravizar os outros. Que os senhores achassem normal ou necessária a escravidão, pode entender-se. Que os libertos o fizessem é material para reflexão. Tudo indica que os valores da liberdade individual, base dos direitos civis, tão caros à modernidade europeia e aos fundadores da América do Norte, não tinham grande peso no Brasil” (p. 49)

Com a abolição da escravidão, os libertos foram entregues à própria sorte. Não lhe foi assegurado acesso às escolas, às terras, a emprego, o que ocasionou o regresso dos ex-escravos às fazendas em troca de baixíssimos salários. Seus descendentes, mesmo após décadas, “ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de seus antepassados escravos” (p. 52). Os que migraram para as cidades, como o Rio de Janeiro, engrossaram o contingente de desempregados. Em São Paulo, centro de maior dinamismo econômico, “os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía para o país” (p. 52). Os antigos escravos foram expulsos ou submetidos a trabalhos brutos e de remuneração baixa.

A população negra até hoje sente as consequências desse passado, ocupando “posição inferior em todos os indicadores de qualidade de vida” (p. 52). Os negros encontram-se na faixa populacional de menor índice de escolaridade, possuem os empregos de menor qualificação, assim como salários e índices de ascensão social inferiores. Essa população “teve que enfrentar sozinha o desafio da ascensão social, e frequentemente precisou fazê-lo por rotas originais, como o esporte, a música e a dança. Esporte, sobretudo o futebol, música, sobretudo o samba, e dança, sobretudo o carnaval, foram os principais canais de ascensão social dos negros até recentemente” (p. 53).

Outro limite à cidadania, a grande propriedade, é mais perene, pois “se é possível se argumentar que os efeitos da escravidão ainda se fazem sentir no Brasil de hoje, a grande propriedade ainda é uma realidade em várias regiões do país” (p. 53). O poder exercido nas grandes fazendas historicamente excluía os direitos civis, não somente os políticos. Nessas propriedades, “imperava a lei do coronel, criada por ele, executada por ele” (p. 56). Seus trabalhadores e dependentes exerciam papel de súditos e o Estado, quando se aproximava, “fazia dentro do acordo coronelista, pelo qual o coronel dava seu apoio político ao governador em troca da indicação de autoridades, como o delegado de polícia, o juiz, o coletor de impostos, o agente do correio, a professora primária” (p. 56).

Quanto a esses elementos, dirá o autor,

“O que significava tudo isso para o exercício dos direitos civis? Sua impossibilidade. A justiça privada ou controlada por agentes privados é a negação da justiça. O direito de ir e vir, o direito de propriedade, a inviolabilidade do lar, a proteção da honra e da integridade física, o direito de manifestação, ficavam todos dependentes do poder do coronel. Seus amigos e aliados eram protegidos, seus inimigos eram perseguidos ou ficavam simplesmente sujeitos aos rigores da lei. Os dependentes dos coronéis não tinham outra alternativa senão colocar-se sob sua proteção. Várias expressões populares descreviam a situação: 'Para os amigos, pão; para os inimigos, pau.'. Ou então: 'Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei'”. (p. 56-57)

Nas condições apresentadas, o direito político era inviável, dado o fato de que não haviam “as condições necessárias para o exercício independente do direito político” (p. 57).

A cidadania operária

Dado os obstáculos, sobretudo civis, à cidadania, no ambiente da grande propriedade rural, a classe operária urbana “deveria significar a possibilidade da formação de cidadãos mais ativos” (p. 57), o que realmente aconteceu. O movimento operário “lutava por direitos básicos, como de organizar-se, de manifestar-se, de escolher o trabalho, de fazer greve” (p. 57) e também por direitos sociais. Quanto aos direitos políticos, a relação foi contraditória, já que um setor mais próximo do governo, chamado de “amarelos”, eram os que mais votavam, envoltos, no entanto, numa postura clientelista. Os setores mais radicais, liderados pelos anarquistas, rejeitavam as instituições, inclusive eleitorais.

Cidadãos em negativo

As manifestações políticas até 1930 tiveram uma característica de ausência de sentimento nacional e de baixa participação nos grandes acontecimentos do país, limitada a restritos grupos. O povo, em geral, “tinha com o governo uma relação de distância, de suspeita, quando não de aberto antagonismo” (p. 83), movimentando-se em momentos de arbítrio das autoridades, em especial nas áreas rurais, onde as revoltas populares de maior destaque aconteceram.

Em 1832, na fronteira das províncias de Pernambuco e Alagoas, pequenos proprietários, índios, camponeses e escravos se mobilizaram para defesa da Igreja Católica e pela volta de D. Pedro I. O conflito denominado de Revolta dos Cabanos prolongou-se por três anos e seus últimos revoltosos foram caçados nas matas como animais.

Seis anos depois, em 1838, no Maranhão, um movimento reuniu 11 mil homens e ocupou a segunda maior cidade da província, Caxias. Ficou conhecido como Balaiada, devido a um de seus líderes ser fabricante de balaios. As divisões internas entre os homens livres e os escravos contribuíram para a sua derrota em 1840.

A Cabanagem, em 1835, foi a mais violenta e dramática, sendo originada na província do Pará. Seus protagonistas eram “na maioria índios, chamados 'tapuios', negros e mestiços” (p. 69) levando a que boa parte da população branca se refugiasse em navios de guerra estrangeiros. Foram cinco anos de duração do conflito e aproximadamente 4 mil cabanos mortos em prisões, navios e hospitais.

Ainda 35, em Salvador, ocorreu a revolta dos escravos malês, que, apesar de abortada, sofreu uma dura repressão, com números de mortos calculados em 40, entre libertos e escravos, além de cinco executados após serem sentenciados.

Canudos e Contestado foram as “duas grandes revoltas messiânicas” (p. 71). Aquela, no interior da Bahia, foi liderada por Antônio Conselheiro, reunindo milhares de sertanejos, onde tentou “criar uma comunidade de santos onde as práticas religiosas tradicionais seriam preservadas e onde todos poderiam viver irmanados pela fé” (p. 72). Foi destruída “a poder de canhões, em nome da República e da modernidade” (p. 72). Nesta, a utopia sertaneja também era eminente e um “dos fatores que levaram à formação da comunidade fora a luta pela propriedade da terra, exacerbada pela chegada ao local de uma grande companhia estrangeira de construção de estrada de ferro” (p. 72).

No Rio de Janeiro, em 1880, mais de 5 mil pessoas se reuniram para protestar contra o aumento de um vintém no preços da passagens do transporte urbano. Houve confronto com a polícia e a multidão “quebrou coches, arrancou trilhos, espancou cocheiros, esfaqueou mulas, levantou barricadas” (p. 72), em um movimento que durou três dias. A Revolta da Vacina, ainda no Rio, “foi um protesto popular gerado pelo acúmulo de insatisfações com o governo” (p. 74).

A característica dos movimentos eram não a sua capacidade de propositura, mas a de reação “a medidas racionalizadoras ou secularizadoras do governo” (p. 75). Formava-se o esboço do cidadão, ainda que em negativo.

O sentimento nacional

A identificação essencial dos brasileiros, em sua classificação emotiva, se dava com a província, sendo o Brasil “uma construção política, um ato de vontade movido pela antes pela mente que pelo coração” (p. 77). Durante a Regência, sucederam-se manifestações de cunho separatista, tais como a Sabinada, a Cabanagem e a Farroupilha, esta última no Rio Grande do Sul. O sentimento mais identificado com a nação se dava no “ódio aos estrangeiro, sobretudo o português” (p. 77).

Ao adotar um federalismo do tipo norte-americano, a República reforçou o “fortalecimento das lealdades provinciais em detrimento da lealdade nacional” (p. 81), de tal maneira que era comum a análise de que, por consequência dessa arquitetura institucional, o país acabaria se fragmentando. No entanto, a “unidade foi mantida afinal, mas não se pode dizer que o novo regime tenha sido considerado uma conquista popular e portanto um marco na criação de uma identidade nacional. Pelo contrário, os movimentos populares da época tiveram quase todos características antirrepublicanas” (p. 81).

Marcha acelerada (1930-1964)

O marco da mudança qualitativa da cidadania na história do Brasil será o ano de 1930, quando, a partir de então, “houve aceleração das mudanças sociais e políticas” (p. 87). A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a extensa legislação trabalhista e previdenciária são alguns dos exemplos. Daí, a “legislação social não parou de ampliar seu alcance, apesar dos grandes problemas financeiros e gerenciais que até hoje afligem sua implementação” (p. 87).

Quanto aos direitos políticos, seu avanço foi mais complexo com a inserção do país num período de instabilidade e de alternância entre ditaduras e democracias. Enquanto isso, os progressos quanto aos direitos civis foram lentos, pois “sua garantia na vida real continuou precária para a grande maioria dos cidadãos” (p. 88). No período ditatorial, os direitos à liberdade de expressão do pensamento e de organização foram suspensos, assim como vários outros, e o direito à organização sindical foi garantido sob o guarda-chuva do Estado, num modelo corporativo que o vinculava ao Executivo.

Quanto à identidade nacional, alguns episódios contribuíram para seu progresso, como o movimento de 1930 e as campanhas nacionalistas da década de 50, em especial em prol do monopólio estatal do petróleo. O nacionalismo foi estimulado pelo Estado Novo e consolidou-se como “o principal instrumento de promoção de uma solidariedade nacional, acima das lealdades estaduais” (p. 88). Na década de 50, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado no Rio de Janeiro, “foi o principal formulador e propagandista do credo nacionalista” (p. 88).

1930: marco divisório

Do ponto de vista histórico, o ano de 1930 demarca a ruptura com o modelo republicano sustentado pelas oligarquias regionais, caracterizado como Primeira República. Seu último presidente, Washington Luís, “foi deposto por um movimento armado dirigido por civis e militares de três estados da federação, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba” (p. 89).

Sua derrocada tem relação com fatores externos e internos, que produziram impacto decisivo sobre a aliança das oligarquias. Entre aqueles, a 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917 e a quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Quanto à dinâmica interna, destaca-se a Semana de Arte de Moderna, de 1922, que desde o início, “mesmo na versão puramente estética do movimento, (…) já trazia em si uma crítica profunda ao mundo cultural dominante” (p. 92)

A derrubada da Primeira República assumiu simbolicamente contornos mais avançados em relação à sua proclamação em 1889,

“(...) Em 1930, o movimento foi precedido de uma eleição que, apesar das fraudes, levou o debate a uma parcela da população. O assassinato do governo de Paraíba introduziu um elemento de emoção totalmente ausente em 1889. A mobilização revolucionária envolveu muitos civis nos estados rebelados. No Rio Grande do Sul pode-se dizer que houve verdadeiro entusiasmo cívico. O povo não esteve ausente como em 1889, não assistiu 'bestializado' ao desenrolar dos acontecimentos. Foi ator no drama, posto que coadjuvante.” (p. 96)

Ensaio de participação política (1930-1937)

Este foi um período de efervescência política, em que “só a Regência, um século antes, e os anos inicias da República tinha vivido situação situação parecida” (p. 97). A mobilização envolveu vários estados e a própria capital do país, como também numerosos grupos sociais, como os operários, a classe média, as oligarquias, os segmentos industriais e os militares. Do ponto de vista organizativo, surgiram inúmeros sindicatos e outras associações de classes; partidos políticos foram fundados e “pela primeira vez foram criados movimentos políticos de massa de âmbito nacional” (p. 97-98).

Em 1932, a Revolução Constitucionalista, ocorrida em São Paulo, “foi a mais importante guerra civil brasileira do século XX” (p. 100). A reivindicação dos paulistas se dava pelo “fim do governo ditatorial e a convocação de eleições para escolher uma assembleia constituinte” (p. 100). Embora de caráter conservador, foi uma “impressionante demonstração de entusiasmo cívico” (p. 100), com grande mobilização popular e contribuição da indústria ao esforço de guerra. Apesar da derrota militar, foram vitoriosos politicamente, pois,

“(...) O governo federal concordou em convocar eleições para a assembleia constituinte que deveria eleger também o presidente da República. As eleições se deram em 1933, sob novas regras eleitorais que representavam já grande progresso em relação à Primeira República. Para reduzir as fraudes, foi introduzido o voto secreto e criada uma justiça eleitoral. (…) Houve também avanços na cidadania política. Pela primeira vez, as mulheres ganharam direito ao voto.” (p. 101)

Com a Constituição, a luta política ganhou nova força. Dois grandes movimentos políticos surgiram no período, à esquerda e à direita. Daquele lado, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), liderada por Luís Carlos Prestes, orientada pela Terceira Internacional. Deste, a Ação Integralista Brasileira (AIB), de orientação política fascista e liderada por Plínio Salgado.

Em novembro de 1935, a ANL promoveu um levante que acabou circunscrito a três capitais, Rio de Janeiro, Recife e Natal, com foco nos quartéis e contanto com baixo envolvimento popular. Sem dificuldade de reprimir o movimento, o governo fez dele bom uso, tomando como “pretexto para expulsar do Exército os elementos mais radicais e para exagerar o perigo de uma revolta comunista no país” (p. 104). Foi criado, com o apoio do Congresso, um Tribunal de Segurança Nacional cujo objetivo era julgar crimes políticos. Além disso, a “ANL foi fechada e seus simpatizantes foram perseguidos” (p. 105).

Em 1937, Getúlio Vargas instaurou a Ditadura do Estado Novo, numa conjuntura em que,

“A aceitação do golpe indica que os avanços democráticos posteriores a 1930 ainda eram muito frágeis. A vida nacional sofrera uma sacudida, mas tanto as convicções como as práticas democráticas ainda engatinhavam. A oposição ao Estado Novo só ganhou força por efeito das mudanças externas trazidas com o final da Segunda Guerra Mundial. De 1937 a 1945, o país viveu sob um regime ditatorial civil, garantido pelas forças armadas, em que as manifestações políticas eram proibidas, o governo legislava por decreto, a censura controlava a imprensa, os cárceres se enchiam de inimigos do regime.” (p. 109)

Mesmo os integralistas foram alvo da repressão após tentarem um golpe em 1938, cujo objetivo era efetuar a prisão de Getúlio Vargas e assumir o Executivo. Tal como em 1935, “o golpe fracassou e deu oportunidade ao governo para completar o expurgo das forças armadas” (p. 109). Com isso, não restava dúvida sobre a natureza do regime, paternalista e avesso às mobilizações de rua.

Os direitos sociais na dianteira (1930-1945)

Diferentemente dos direitos políticos, os direitos sociais avançaram significativamente no período. A começar pela vasta legislação trabalhista, que culminou com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943. Tais avanços, no entanto, herdaram o pecado de origem, dado que introduzidos num clima de baixa ou nula participação política e de direitos civis ainda precários, de tal modo que “a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa” (p. 110). Wanderley Guilherme dos Santos classificou essa característica como uma “cidadania regulada”.

Nessa legislação que constituiu a originalidade dos direitos sociais no país, os trabalhadores rurais, os trabalhadores domésticos e os autônomos estiveram à margem. Quanto aos primeiros, destaca-se o peso que detinham na política os proprietários rurais e quanto aos dois últimos, revela-se o “receio de atingir a classe média urbana” (p. 123), quando aos trabalhadores domésticos e à inexpressividade dos autônomos enquanto agentes políticos que merecessem controle ou cooptação do governo. Segundo o autor,

“(...) A ênfase nos direitos sociais encontrava terreno fértil na cultura política da população, sobretudo da população pobre dos centros urbanos. Essa população crescia rapidamente graças à migração dos campos para as cidades e do nordeste para o sul do país. O populismo era um fenômeno urbano e refletia esse novo Brasil que surgia, ainda inseguro mas distinto do Brasil rural da Primeira República, que dominara a vida social e política até 1930. (…) Era avanço na cidadania, na medida em que trazia as massas para a política. Mas, em contrapartida, colocava os cidadãos em posição de dependência perante os líderes, aos quais votavam lealdade pessoal pelos benefícios que eles de fato ou supostamente lhes tinham distribuído. A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora” (p. 126).

A vez dos direitos políticos (1945-1964)

Com a derrubada do governo de Vargas, o Brasil passaria por novas eleições no final de 1945. Em dezembro, as eleições legislativas e presidenciais elegeriam o novo chefe do Executivo e uma nova assembleia constituinte, “a terceira desde a fundação da República” (p. 126). O novo presidente eleito, general Eurico Gaspar Dutra, tomou posse em janeiro de 46, ano em que também se promulgou a nova constituição, marcando a primeira experiência democrática da nossa história.

Com a Constituição de 1946, os direitos sociais do período anterior foram mantidos e se garantiram os direitos civis e políticos tradicionais. Até o golpe militar de 64, existia liberdade de imprensa e também de organização política, além de eleições regulares para presidente da República, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. À exceção do Partido Comunista, cujo registro fora cassado em 47, diversos partidos políticos foram constituídos e tiveram atuação livre dentro e fora do Congresso Nacional.

No início da década de 60, várias organizações de diferentes matizes ideológicas surgiram em um ambiente político marcado pela radicalização. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi criado sob a tutela de empresários nacionais e estrangeiros; o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) fornecia apoio financeiro a políticos de oposição e a sindicatos e movimentos estudantis contrários ao governo; a Ação Democrática Parlamentar (ADP) reunia em torno de si deputados conservadores de diferentes partidos. Assentavam-se sobre o anticomunismo e, alinhados com outras organizações como a Igreja Católica, associações de proprietários rurais, de comércio e da indústria e a Escola Superior de Guerra (ESG) fomentavam o golpe que viria a seguir.

Por outro lado, a União Nacional dos Estudantes (UNE) ganhava maior dinamismo e influência, envolvendo-se “em todas as grandes negociações políticas, frequentemente com o apoio do Ministério da Educação” (p. 137). No mesmo período, setores da Igreja Católica começaram “a abandonar sua tradicional posição política reacionária e investia no movimento estudantil, no movimento operário e camponês, na educação de base” (p. 138). José Murilo de Carvalho descreve uma nova novidade que surgia na luta política.

“(...) Pela primeira vez na história do país, excetuando-se as revoltas camponesas do século XIX, os trabalhadores rurais, posseiros e pequenos proprietários entraram na política nacional com voz própria. O movimento começou no Nordeste em 1955, sob o nome de Ligas Camponesas. Ganhou notoriedade com a adesão de um advogado e deputado com grande talento mobilizador, Francisco Julião. Sociedades civis, as Ligas escapavam à legislação sindical e, portanto, ao controle do Ministério do Trabalho. Mas ficavam também fora da proteção das leis trabalhistas, fato que lhes trouxe dificuldade na competição com os sindicatos.” (p. 138)

Como resultado desse movimento, o Estatuto do Trabalhador Rural foi promulgado em 1963, resultando na extensão dos direitos sociais e sindicais ao campo. Com a desburocratização para formação dos sindicatos rurais, ampliou-se a influência da esquerda, da Igreja e da Ação Popular (AP) sobre o sindicalismo rural. Em 1964, foi criada a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que “já englobava 26 federações e 263 sindicatos reconhecidos pelo Ministério” (p. 139) com mais 500 que aguardavam serem reconhecidos.

Crescia a pressão popular por reformas estruturantes. João Goulart “achava-se imprensado entre os conspiradores de direita, que o queriam derrubar, e os setores radicais da esquerda, que o empurravam na direção de medidas cada vez mais ousadas” (p. 141). O presidente cedeu à esquerda e “concordou em realizar grandes comícios populares como meio de pressionar o Congresso a aprovar as 'reformas de base'” (p. 141), realizando-o em março de 1964, em frente à Central do Brasil.

Nesse grande comício, calcula-se a participação popular em 150 mil pessoas. As lideranças sociais reivindicam reformas e constituinte. O presidente fez seu discurso e, a seguir, “assinou dois decretos, um deles nacionalizando uma refinaria de petróleo, o outro desapropriando terras às margens de ferrovias e rodovias federais e de barragens de irrigação” (p. 141). Em particular, este último elevava o tencionamento com os proprietários rurais.

O golpe, marcado para o dia 2 de abril, fora antecipado após a presença de Goulart em uma reunião de sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em que fez um discurso contundente, radicalizando no discurso. No dia 2 de abril, a classe média estava nas ruas celebrando a queda do presidente. Segundo José Murilo de Carvalho, isso demonstrava a fraqueza do movimento social.

“No auge da crise, revelou-se com nitidez a natureza de cúpula da organização sindical. Os confiantes dirigentes sindicais convocaram uma greve geral para o dia 31 de março em oposição ao golpe. Seu apelo não foi ouvido. As grandes massas em nome das quais falavam os líderes não apareceram para defender o governo. As que apareceram foram as da classe média, no dia 2 de abril, para celebrar a queda do presidente. A grande mobilização política por que passara o país acabava em um verdadeiro anticlímax. Apesar do barulho feito, via-se agora que o movimento popular era um castelo de cartas.” (p. 144)

Passo atrás, passo adiante

O golpe de 64 assemelhava-se ao de 37 enquanto resposta à elevação da participação política, restringindo-se os direitos civis e políticos. Para Carvalho, “os dois períodos se assemelham ainda pela ênfase dada aos direitos sociais, agora estendidos aos trabalhadores rurais, e pela forte atuação do Estado na promoção do desenvolvimento econômico” (p. 157). A diferença entre ambos, se daria pelo funcionamento do Congresso e pela realização de eleições pós-64.

O autor divide o período militar em três fases. O primeiro, de 64 a 68, compreende os governos de Castelo Branco e o primeiro de Costa e Silva, é caracterizado “por intensa atividade repressiva seguida de sinais de abrandamento” (p. 157). Quanto à economia, foi marcado pelo combate à inflação, queda acentuada do salário mínimo e crescimento baixo. O domínio político foi dos “setores mais liberais das forças armadas, representados pelo general Castelo Branco” (p. 157).

A segunda fase segue de 68 ao ano de 74, período “mais sombrio da história do país, do ponto de vista dos direitos civis e políticos” (p. 157). Correspondeu ao domínio militar mais truculento, sob a autoridade do general Garrastazu Médici, em que chegou-se ao ápice da violência tal como de crescimento econômico. O salário mínimo continuou a cair.

A terceira e última fase, iniciada em 74 com a posse do general Ernesto Geisel, termina em 85, após a vitória de Tancredo Neves à presidência em eleição indireta. Sua marca é representava pela “tentativa do general Geisel de liberalizar o sistema, contra a forte oposição dos órgãos de repressão” (p. 157). Após a crise do petróleo de 73, a economia perde força chegando a índices de crescimento negativos no começo da década de 80.

Durante a ditadura militar, ocorrera uma expansão veloz da economia e com ela o migração da população do campo para as cidades. Se em 1960, a população urbana era de 44,7% do total, em 1980 ela passara a ser de 67,6%. Tais mudanças na sociedade tiveram efeitos catastróficos para as grandes cidades, percebidas apenas mais posteriormente.

Passo adiante: voltam os direitos civis e políticos (1974-1985)

A inovação na articulação e na ação política viera “sobretudo dos operários de setores novos da economia que tinham se expandido durante o 'milagre' do período Médici: os de bens de consumo durável e de bens de capital” (p. 180). Ao lado do novo sindicalismo, organizado a partir de sua base e não da cúpula, a outra inovação fora a criação do Partido dos Trabalhadores. Destaca o autor que,

“O novo movimento distinguia-se do sindicalismo herdeiro do Estado Novo em vários pontos. Um deles é o de ser organizado de baixo para cima, de começar na fábrica, sob a liderança de operários que vinham das linhas de produção, em contraste com a estrutura burocratizada dominada pelos pelegos. Grande ênfase era dada às comissões de fábrica e aos delegados sindicais que funcionavam dentro das fábricas. As decisões finais eram tomadas em grandes assembleias que reuniam às vezes até 150 mil operários, e não por pequenos comitês de dirigentes. Os novos líderes tinham grande carisma, sobretudo Luís Inácio da Silva, Lula, que se tornou um dos principais nomes da vida política nacional. Outra característica do novo sindicalismo, em contraste radical com o antigo sistema, era a insistência em se manter independente do controle do Estado. Não era movimento paralelo ao anterior: buscava transformar o sistema antigo em representação autêntica do operariado. Essa tendência consolidou-se com a formação de organizações sindicais nacionais. (…)” (p. 180-181)

Com o fracasso da guerrilha dos anos 70, “desapareceram as várias organizações militarizadas formadas a partir de 1968” (p. 182). Em seu lugar, surgiram diversas “organizações, civis ou religiosas, cujas finalidades nem sempre eram diretamente políticas, mas que tinham a vantagem de um contato estreito com as bases, o que não se dava com os grupos guerrilheiros” (p. 182-183). Organizam-se também movimentos sociais urbanos, como os movimentos de favelados e associações de moradores de classe média, cujo foco se dava em torno dos problemas da vida cotidiana, cuja tática recorrente era a relação com as administrações municipais.

O pico da mobilização popular foi alcançada através da campanha por eleições diretas, no ano de 84. Com as eleições previstas para janeiro de 1985, as forças de oposição “decidiram ir além do simples lançamento de um candidato que competisse simbolicamente com o candidato oficial” (p. 188). Liderado pelo PMDB e aglutinando partidos de oposição e organizações como CNBB, OAB e ABI, as ruas foram tomadas pela defesa das eleições diretas para presidente. Para se tornar realidade, o Congresso deveria aprovar uma emenda por dois terços do voto.

As mobilizações pelas Diretas Já foram importante exercício cívico nacional, reunindo líderes dos partidos políticos de oposição, de associações como a ABI, UNE e OAB, jogadores de futebol, cantores e artistas de televisão. O verde e amarelo da bandeira ganhavam as roupas, faixas e bandeiras, além do hino nacional que “foi revalorizado e reconquistado pelo povo” (p. 189), num momento emocionante da história do país.

Apesar de rejeitada a proposta das eleições diretas no Congresso Nacional e o sentimento de frustração com a morte de Tancredo Neves, eleito primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar, “os brasileiros iniciaram o que se chamou de 'Nova República' com o sentimento de terem participado de uma grande transformação nacional, de terem colaborado na criação de um país novo” (p. 193). Uma euforia semelhante à da conquista da Copa de 70, do slogan “Brasil: Ame-o ou deixe-o”, quando inúmeros brasileiros sofriam com a repressão.

A cidadania após a redemocratização

José Murilo de Carvalho destaca alguns aspectos da Constituição de 1988, tais como o direito de voto aos analfabetos, que somavam na década de 90 aproximadamente 30 milhões de pessoas no país. Quanto ao ambiente democrático, o surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST), incorporando à luta política “parcela importante da população, tradicionalmente excluída pela força do latifúndio” (p. 203).

Outros antigos problemas ganhavam força no noticiário, em especial o problema da corrupção. Há ainda o peso negativo que exerce as polícia militar, que “tem-se revelado inadequada para garantir a segurança do cidadão” (p. 213). Segundo o autor, o soldado da polícia é “preparado para combater e destruir inimigos e não para proteger cidadãos” (p. 213). A situação torna-se ainda pior diante de um judiciário moroso, caso e que induz a população a acreditar que a justiça só beneficia os mais ricos.

Conclusão: a cidadania na encruzilhada

Segundo Carvalho, reforça as dificuldades da cidadania no país o percurso pelo qual ela trilhou, em uma trajetória invertida da dos demais países,

“(...) Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um diretor que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo” (p. 219-220)

Dentre os problemas para eficácia democrática, resultante da inversão da sequência, é a supervalorização do Poder Executivo.

“Se os direitos sociais foram implantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo. (…) Essa orientação para o Executivo reforça longa tradição portuguesa, ou ibérica, o patrimonialismo. O Estado é sempre visto como todo-poderoso, na pior hipótese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalistas de empregos e favores. A ação política nessa visão é sobretudo orientada para a negociação direta com o governo, sem passar pela mediação da representação. (…) Essa cultura orientada mais para o Estado do que para a representação é o que chamamos de 'estadania' em contraste com a cidadania.” (p. 221)

Reforça a cultura política governista, voltada ao Estado, a partir dessa inversão de direitos, o corporativismo dos interesses coletivos, herdado do Estado Novo, em os “benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo” (p. 224), levando a sociedade a se organizar em defesa de seus direitos e privilégios a partir do Estado. Com a redemocratização, nota-se “a força das grandes corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação de privilégios ou em busca de novos fatores” (p. 224).

Dentre as mudanças provocadas pela queda da União Soviética, do crescente movimento de minorias nos Estados Unidos, e diante da globalização em ritmo acelerado, as mudanças tem provocado,

“(...) a redução do papel central do Estado como fonte de direitos e como arena de participação, e o deslocamento da nação como principal fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de um desafio à instituição do Estado-nação. A redução do papel do Estado em benefício de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos políticos. Na União Europeia, os governos nacionais perdem poder e relevância diante dos órgãos políticos e burocráticos supranacionais. Os cidadãos ficam cada vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisões políticas e econômicas são tomadas fora do âmbito nacional.” (p. 225)

Nos Estados Unidos, os movimentos de minorias “contribuíram (…) para minar a identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades culturais baseadas em gênero, etnia, opções sexuais, etc.” (p. 226), enfraquecendo o poder do Estado e fragmentação a identidade nacional.

Aqui, a inversão na sequência dos direitos, “reforço entre nós a supremacia do Estado” (p. 227). José Murilo de Carvalho sugere, então, a importância de “reforçar a organização da sociedade para dar embasamento social ao político, isto é, para democratizar o poder” (p. 227). A sociedade deve se organizar para superar o Estado clientelista, corporativista e colonizado e não contra o Estado em si. Nesse sentido, há diversos exemplos de organizações que surgem na sociedade e atuam no envolvendo com as políticas públicas, seja na formulação ou mesmo na execução delas.

Por fim, adverte o hoje que a “desigualdade é a escravidão de hoje, o câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática. A escravidão foi abolida após 65 anos após a advertência de José Bonifácio. A precária democracia de hoje não sobreviveria a espera tão longa para extirpar o câncer da desigualdade” (p. 229)

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