Palavras-chave:
direitos sociais, direitos políticos, direitos civis, cidadão em
negativo, cidadania regulada, identidades
Resumo: Quando José Murilo de Carvalho lançou Cidadania no Brasil - O Longo Caminho, em 2001, a desesperança era um traço característico dos brasileiros. Envolto em crises econômicas das quais era o primeiro a entrar e o último a sair, o país estava entre os mais desiguais do planeta e aplicava políticas sociais com a convicção de que o desemprego seria o caminho natural e irreversível para uma grande fatia da população. Pouco mais de uma década de Constituição Cidadã, quando os direitos sociais, civis e políticos promulgados resultaram em grande otimismo ao final década de 80, a vida real se impôs e com ela os problemas e vícios que a cultura política brasileira herdou de longos anos de personalismo, clientelismo e corporativismo.
As dificuldades são ainda maiores pela inversão pela qual o país passou quanto à obtenção de direitos. Enquanto na Inglaterra os direitos civis foram pioneiros e abriram caminho para a conquista dos direitos políticos, e estes, por conseguinte, para os direitos sociais, no Brasil os direitos políticos e civis tiveram trajetórias curtas e inconstantes, diferentemente dos direitos sociais, que a partir da década de 30 ganharam ritmo ascendente. Neste período, sem liberdades democráticas, organizações de base social consistente e partidos políticos capazes de debater sem amarras no Congresso Nacional, o resultado foi o fortalecimento entre nós da cultura da estatolatria.
Estimulada por Vargas, o presidente que criou, usou e abusou da gramática política corporativista ao atrair os trabalhadores urbanos para seu projeto de poder ao estilo patriarcal, a cultura da estatolatria gerou o sentimento de supremacia do Estado sobre o domínio das demandas da sociedade. Comunistas e mesmo integralistas foram perseguidos em meio ao objetivo de transferir o domínio das disputas políticas para as negociações no âmbito do governo federal.
Voltando ainda mais no tempo, registra-se na formação social do país os desequilíbrios e aspectos da cultura política enraizada entre nós, de negação à cidadania a grandes parcelas da população e a escravidão, especificamente, como o elemento de maior peso à promoção dos direitos. Com a abolição da escravatura, em 1888, os governos se negaram a promover alternativas que permitissem a inclusão à cidadania via educação, moradia, emprego, dentre outros, restando aos negros, ainda hoje, o fardo de ocuparem em condições de grande disparidade as estatísticas sociais.
O livro de José Murilo de Carvalho é um estudo rico para compreensão da qualidade das políticas sociais adotadas pelo país nos últimos anos, as quais buscam enfrentar e superar nossas dívidas sociais mais profundas. É também desafiante na medida em que nos remete à necessidade de enfrentar a cultura política estabelecida e incorporada por gerações dada a relação de dependência frente ao Estado e a fragilidade das bases sociais do movimento social e popular em geral.
Introdução: Mapa da viagem
A Constituição de 1988 foi legada
ao país nos marcos do esforço de superação do entulho autoritário
e sob a perspectiva de se inaugurar uma nova página na nossa
história, com a consolidação de novos direitos sociais, políticos
e civis naquilo que se convencionou chamar de Constituição
Cidadã. Carvalho
registra o episódio destacando a ilusão de que “a democratização
das instituições traria rapidamente a felicidade nacional” (p.
7).
É certo de que se avançou na liberdade, na manifestação do
pensamento, na ação política e sindical, na participação em
geral, no direito ao voto, mas as limitações à cidadania eram
claras. Em outras áreas sociais houve uma estagnação, consequência
principalmente da “crescente dependência do país em relação à
ordem econômica internacional” (p. 8), algo que influenciava a
sociedade de duas maneiras: pelo sofrimento humano que os problemas
sociais provocam e pelas tentações políticas em prol do retrocesso
frente às conquistas alcançadas.
Antes de desenvolver uma abordagem histórica sobre o tema,
destaca-se o papel exercido pela cidadania segundo o autor, que
afirma que,
“(...) O cidadão pleno seria
aquele que fosse titular dos três direitos [civis, políticos e
sociais]. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas
alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos
direitos seriam não-cidadãos. (...)” (p. 9)
Nesse sentido, são direitos civis aqueles relacionados aos direitos
à liberdade, à vida, à propriedade e à igualdade perante a lei,
garantindo “as relações civilizadas entre as pessoas e a própria
existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do
capitalismo” (p. 9). Os direitos políticos consistem na
“capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar
partidos, de votar, de ser votado” (p. 9). Reconhecido em geral
pelo direito do voto, suas principais instituições são os partidos
e o parlamento livre e representativo. Já os direitos sociais
“garantem a participação na riqueza coletiva” (p. 10) e são
identificados através do direito à educação, ao trabalho, à
aposentadoria, à saúde, dentre outros.
Primeiros passos
José Murilo de Carvalho desenvolve uma divisão periódica atípica
para classificar a evolução da cidadania no país. Seguindo o seu
roteiro, serão destrinchadas inicialmente a fase colonial e a seguir
a do período imperial e Primeira República.
O peso do passado (1500-1822)
Em 1822, com a independência, o Brasil herdara uma tradição de
baixo grau de civismo. Se por um lado, o país consolidara uma
unidade territorial, linguística, cultural e religiosa, por outro, a
existência de população em sua maior parte analfabeta, em uma
sociedade escravocrata, absolutista, de economia monocultora e
latifundiária impunha ao novo país um significativo fardo a ser
enfrentado. O traço essencial da economia e da sociedade era
representado pelo latifúndio monocultor e exportador de base
escravista.
Quanto à cidadania, a escravidão foi seu fator mais prejudicial.
Estima-se em 3 milhões de escravos importados pelo Brasil até 1822,
num peso tal que mesmos os cativos, quando libertos, adquiriam
escravos, numa “sociedade colonial [que] era escravista de alto a
baixo” (p. 20). Desse modo,
“Escravidão e grande propriedade
não constituíam ambiente favorável à formação de futuros
cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos
civis básicos à integridade física (podiam ser espancados), à
liberdade e, em casos extremos, à própria vida, já que a lei os
considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais. (...)”
(p. 21)
A proteção da justiça dependia de decisões que muitas vezes eram
dadas pela metrópole, distante milhares de quilômetros da
população. Ao cidadão comum, restava a proteção dos grandes
proprietários ou o arbítrio dos poderosos. Escravos e mulheres
integravam a jurisdição privada dos senhores, sem o acesso à
justiça. Àqueles “restava o recurso da fuga e da formação de
quilombos” (p. 22), recurso precário pelo sistemático combate
empreendido pelo governo ou por particulares a seu serviço.
Poder público e grandes proprietários representavam, por vezes, uma
simbiose de conluios e interesses interligados cuja combinação se
dava em detrimento da grande maioria da população. Diante disso,
“não existia de verdade um poder que pudesse ser chamado de
público, isto é, que pudesse ser a garantia da igualdade de todos
perante a lei, que pudesse ser a garantia dos direitos civis” (p.
22).
Apesar do grau de dominação, a população não estava impassiva.
No século XVIII, quatros revoltas políticas estremeceram o ambiente
político, sendo a Inconfidência Mineira em 1798 a de maior
politização, pois inspirada “no ideário iluminista do século
XVIII e no exemplo da independência das colônias da América do
Norte” (p. 24). Seus líderes faziam parte do círculo dominante
(militares, fazendeiros, padres, poetas e magistrados).
A Revolta dos Alfaiates (1798), na Bahia, foi a mais popular e a
“única envolvendo militares de baixa patente, artesãos e
escravos”. O alvo principal era a escravidão e a dominação dos
brancos, influenciada pela Revolução Francesa. Ainda no período
colonial, em Pernambuco os rebeldes de 1817 “proclamaram uma
república independente que incluía, além de Pernambuco, as
capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte” (p. 25). Estiveram
à frente do governo por dois meses e alguns dos seus líderes foram
fuzilados num período em que “apareceram com mais clareza alguns
traços de uma nascente consciência de direitos sociais e políticos”
(p. 25).
O período colonial chegara ao fim com uma imensa população à
margem dos “direitos civis e políticos e sem a existência de um
sentido de nacionalidade” (p. 25). A identificação dos cidadãos
se dava com alguma intensidade em nível regional, não com o país.
1822: os direitos políticos saem na frente
O Brasil torna-se independente numa caracterização diferente da dos
demais países latino-americanos. Aqui a principal característica
“foi a negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a
Inglaterra, tendo como figura mediadora o príncipe D. Pedro” (p.
26). A participação da população foi secundária, legitimando
“por meio de manifestações públicas a ação dos líderes,
inclusive a de D. Pedro” (p. 26).
Com a Constituição de 1824, resultante de uma combinação de
ideias de constituições europeias, foram estabelecidos os poderes
Executivo, Legislativo (Câmara e Senado) e o Judiciário. Além
desses, fora criado o Poder Moderador, um quarto poder de uso
privativo do imperador cuja “principal atribuição (…) era a
livre nomeação dos ministros de Estado, independentemente da
opinião do Legislativo” (p. 29).
A regulação dos direitos políticos viria com a nossa primeira
Carta Magna, que estabelecera o voto a “todos os homens de 25 anos
ou mais que tivessem renda mínima de 100 mil-réis” (p. 30) para
os quais o voto era obrigatório, mesmo para os analfabetos. Segundo
José Murilo de Carvalho, possivelmente “nenhum país europeu da
época tivesse legislação tão liberal”. Dentre os brasileiros
tornados cidadãos pela Constituição, um percentual superior a “85%
eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo,
um alvará da justiça, uma postura municipal” (p. 31), sendo boa
parte desses grandes proprietários rurais em um país em que mais de
90% da população residia nas áreas rurais.
O direito do voto foi instituído em um país que “não tinha (…)
noção do que fosse um governo representativo, do que significava o
ato de escolher alguém como seu representante político” (p. 31),
onde mesmo o patriotismo era limitado e, muitas vezes, restrito ao
ódio ao português. A disputa eleitoral representava “uma ação
estritamente relacionada com as lutas locais” (p. 35) em que o
“voto era um ato de obediência forçada ou, na melhor das
hipóteses, um ato de lealdade e de gratidão” (p. 35).
Durante o Império, havia outras formas de interação da sociedade
com o Estado, como o serviço do júri, do qual participavam,
aproximadamente, 80 mil pessoas em 1870. O serviço militar no
Exército e na Marinha constituíam experiências negativas, visto o
“caráter violento do recrutamento, o serviço prolongado, a vida
dura do quartel, de que fazia parte o castigo físico” (p. 37). Foi
com a Guerra do Paraguai que despertou-se uma identidade nacional,
momento em que “de repente havia um estrangeiro inimigo que, por
oposição, gerava o sentimento de identidade brasileira” (p. 38).
O confronto mobilizou aproximadamente 135 mil brasileiros.
1881: O tropeço
A Câmara dos Deputados introduziu, no ano de 1881, o voto direto,
extinguindo o primeiro turno das eleições que definiam os votantes
(um estágio superior em relação aos eleitores) e aumentando de 100
para 200 mil-réis a renda mínima para ser considerado eleitor (piso
que embora não fosse considerado alto, veio acompanhado de tal
controle que acabou influenciando o quorum). A queda na participação
foi brusca. Se em 1872, 13% da população livre havia exercido o
direito do voto, em 1886 esse percentual caíra para 0,8%. O Brasil
perdera a vantagem que havia conquistado em 1824 frente aos países
da Europa.
Com a Constituição republicana de 1891, fora eliminada a exigência
dos 200 mil-réis como renda mínima e a exclusão dos analfabetos,
estabelecida em 1881, foi preservada. Mulheres, mendigos, soldados e
membros das ordens religiosas também continuavam excluídos do
direito ao sufrágio. A participação dos brasileiros no processo
eleitoral continuaria baixo por décadas, quando a redemocratização,
em 1945, inauguraria uma nova etapa quanto aos direitos políticos.
Quanto à representação política, entre 1889 e 1930 não houve
grandes mudança. José Murilo de Carvalho explica que as mudanças
estabelecidas a partir da nova Constituição,
“(...) Ela introduziu a federação
de acordo com o modelo dos Estados Unidos. Os presidentes dos estados
(antigas províncias) passaram a ser eleitos pela população. A
descentralização tinha o efeito positivo de aproximar o governo da
população via eleição de presidentes de estado e prefeitos. Mas a
aproximação se deu sobretudo com as elites locais. A
descentralização facilitou a formação de sólidas oligarquias
estaduais, apoiadas em partidos únicos, também estaduais. Nos casos
de maior êxito, essas oligarquias conseguiram envolver todos os
mandões locais, bloqueando qualquer tentativa de oposição política
(...)” (p. 41).
A Primeira República, conhecida como “República dos Coronéis”
representou o controle de dois grandes estados brasileiros, Minas
Gerais e São Paulo, sobre um longo período da vida política
nacional, encerrado somente em 1930. O coronelismo baseava-se na
aliança dos chefes políticos locais, os coronéis remanescentes do
Império, com os presidentes dos estados e destes com o presidente da
República, configurando um “paraíso das oligarquias, [onde] as
práticas eleitorais fraudulentas não podiam desaparecer” (p. 41).
Direitos civis só na lei
Do ponto de vista da cidadania, foi nos direitos civis onde a
escravidão mais pesou. Herdou-se do período colonial “a
escravidão, que negava a condição humana do escravo, (…) a
grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e (…) um Estado
comprometido com o poder privado. (p. 45). Quanto à escravidão, sua
abolição só viria em 1888, enquanto o poder da grande fazenda
demonstra solidez em algumas áreas do país e a desprivatização do
poder pública ainda representa um desafio às forças políticas.
Em estados como a Bahia, Minas Gerais e em outras províncias, a
força da subjetividade escravista era tal que era possível se
encontrar libertos com seus próprios escravos. Dados apresentados
pelo autor indicam que quase 80% de ex-escravos na Bahia detinham
cativos. Para o autor,
“Esses dados são perturbadores.
Significam que os valores da escravidão eram aceitos por quase toda
a sociedade. Mesmo os escravos por quase toda a sociedade. Mesmo os
escravos, embora lutassem pela própria liberdade, embora repudiassem
a escravidão, uma vez libertos admitiam escravizar os outros. Que os
senhores achassem normal ou necessária a escravidão, pode
entender-se. Que os libertos o fizessem é material para reflexão.
Tudo indica que os valores da liberdade individual, base dos direitos
civis, tão caros à modernidade europeia e aos fundadores da América
do Norte, não tinham grande peso no Brasil” (p. 49)
Com a abolição da escravidão, os libertos foram entregues à
própria sorte. Não lhe foi assegurado acesso às escolas, às
terras, a emprego, o que ocasionou o regresso dos ex-escravos às
fazendas em troca de baixíssimos salários. Seus descendentes, mesmo
após décadas, “ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor
do que a de seus antepassados escravos” (p. 52). Os que migraram
para as cidades, como o Rio de Janeiro, engrossaram o contingente de
desempregados. Em São Paulo, centro de maior dinamismo econômico,
“os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram
ocupados pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía
para o país” (p. 52). Os antigos escravos foram expulsos ou
submetidos a trabalhos brutos e de remuneração baixa.
A população negra até hoje sente as consequências desse passado,
ocupando “posição inferior em todos os indicadores de qualidade
de vida” (p. 52). Os negros encontram-se na faixa populacional de
menor índice de escolaridade, possuem os empregos de menor
qualificação, assim como salários e índices de ascensão social
inferiores. Essa população “teve que enfrentar sozinha o desafio
da ascensão social, e frequentemente precisou fazê-lo por rotas
originais, como o esporte, a música e a dança. Esporte, sobretudo o
futebol, música, sobretudo o samba, e dança, sobretudo o carnaval,
foram os principais canais de ascensão social dos negros até
recentemente” (p. 53).
Outro limite à cidadania, a grande propriedade, é mais perene, pois
“se é possível se argumentar que os efeitos da escravidão ainda
se fazem sentir no Brasil de hoje, a grande propriedade ainda é uma
realidade em várias regiões do país” (p. 53). O poder exercido
nas grandes fazendas historicamente excluía os direitos civis, não
somente os políticos. Nessas propriedades, “imperava a lei do
coronel, criada por ele, executada por ele” (p. 56). Seus
trabalhadores e dependentes exerciam papel de súditos e o Estado,
quando se aproximava, “fazia dentro do acordo coronelista, pelo
qual o coronel dava seu apoio político ao governador em troca da
indicação de autoridades, como o delegado de polícia, o juiz, o
coletor de impostos, o agente do correio, a professora primária”
(p. 56).
Quanto a esses elementos, dirá o autor,
“O que significava tudo isso para
o exercício dos direitos civis? Sua impossibilidade. A justiça
privada ou controlada por agentes privados é a negação da justiça.
O direito de ir e vir, o direito de propriedade, a inviolabilidade do
lar, a proteção da honra e da integridade física, o direito de
manifestação, ficavam todos dependentes do poder do coronel. Seus
amigos e aliados eram protegidos, seus inimigos eram perseguidos ou
ficavam simplesmente sujeitos aos rigores da lei. Os dependentes dos
coronéis não tinham outra alternativa senão colocar-se sob sua
proteção. Várias expressões populares descreviam a situação:
'Para os amigos, pão; para os inimigos, pau.'. Ou então: 'Para os
amigos, tudo; para os inimigos, a lei'”. (p. 56-57)
Nas condições apresentadas, o direito político era inviável, dado
o fato de que não haviam “as condições necessárias para o
exercício independente do direito político” (p. 57).
A cidadania operária
Dado os obstáculos, sobretudo civis, à cidadania, no ambiente da
grande propriedade rural, a classe operária urbana “deveria
significar a possibilidade da formação de cidadãos mais ativos”
(p. 57), o que realmente aconteceu. O movimento operário “lutava
por direitos básicos, como de organizar-se, de manifestar-se, de
escolher o trabalho, de fazer greve” (p. 57) e também por direitos
sociais. Quanto aos direitos políticos, a relação foi
contraditória, já que um setor mais próximo do governo, chamado de
“amarelos”, eram os que mais votavam, envoltos, no entanto, numa
postura clientelista. Os setores mais radicais, liderados pelos
anarquistas, rejeitavam as instituições, inclusive eleitorais.
Cidadãos em negativo
As manifestações políticas até 1930 tiveram uma característica
de ausência de sentimento nacional e de baixa participação nos
grandes acontecimentos do país, limitada a restritos grupos. O povo,
em geral, “tinha com o governo uma relação de distância, de
suspeita, quando não de aberto antagonismo” (p. 83),
movimentando-se em momentos de arbítrio das autoridades, em especial
nas áreas rurais, onde as revoltas populares de maior destaque
aconteceram.
Em 1832, na fronteira das províncias de Pernambuco e Alagoas,
pequenos proprietários, índios, camponeses e escravos se
mobilizaram para defesa da Igreja Católica e pela volta de D. Pedro
I. O conflito denominado de Revolta dos Cabanos prolongou-se por três
anos e seus últimos revoltosos foram caçados nas matas como
animais.
Seis anos depois, em 1838, no Maranhão, um movimento reuniu 11 mil
homens e ocupou a segunda maior cidade da província, Caxias. Ficou
conhecido como Balaiada, devido a um de seus líderes ser fabricante
de balaios. As divisões internas entre os homens livres e os
escravos contribuíram para a sua derrota em 1840.
A Cabanagem, em 1835, foi a mais violenta e dramática, sendo
originada na província do Pará. Seus protagonistas eram “na
maioria índios, chamados 'tapuios', negros e mestiços” (p. 69)
levando a que boa parte da população branca se refugiasse em navios
de guerra estrangeiros. Foram cinco anos de duração do conflito e
aproximadamente 4 mil cabanos mortos em prisões, navios e hospitais.
Ainda 35, em Salvador, ocorreu a revolta dos escravos malês, que,
apesar de abortada, sofreu uma dura repressão, com números de
mortos calculados em 40, entre libertos e escravos, além de cinco
executados após serem sentenciados.
Canudos e Contestado foram as “duas grandes revoltas messiânicas”
(p. 71). Aquela, no interior da Bahia, foi liderada por Antônio
Conselheiro, reunindo milhares de sertanejos, onde tentou “criar
uma comunidade de santos onde as práticas religiosas tradicionais
seriam preservadas e onde todos poderiam viver irmanados pela fé”
(p. 72). Foi destruída “a poder de canhões, em nome da República
e da modernidade” (p. 72). Nesta, a utopia sertaneja também era
eminente e um “dos fatores que levaram à formação da comunidade
fora a luta pela propriedade da terra, exacerbada pela chegada ao
local de uma grande companhia estrangeira de construção de estrada
de ferro” (p. 72).
No Rio de Janeiro, em 1880, mais de 5 mil pessoas se reuniram para
protestar contra o aumento de um vintém no preços da passagens do
transporte urbano. Houve confronto com a polícia e a multidão
“quebrou coches, arrancou trilhos, espancou cocheiros, esfaqueou
mulas, levantou barricadas” (p. 72), em um movimento que durou três
dias. A Revolta da Vacina, ainda no Rio, “foi um protesto popular
gerado pelo acúmulo de insatisfações com o governo” (p. 74).
A característica dos movimentos eram não a sua capacidade de
propositura, mas a de reação “a medidas racionalizadoras ou
secularizadoras do governo” (p. 75). Formava-se o esboço do
cidadão, ainda que em negativo.
O sentimento nacional
A identificação essencial dos brasileiros, em sua classificação
emotiva, se dava com a província, sendo o Brasil “uma construção
política, um ato de vontade movido pela antes pela mente que pelo
coração” (p. 77). Durante a Regência, sucederam-se manifestações
de cunho separatista, tais como a Sabinada, a Cabanagem e a
Farroupilha, esta última no Rio Grande do Sul. O sentimento mais
identificado com a nação se dava no “ódio aos estrangeiro,
sobretudo o português” (p. 77).
Ao adotar um federalismo do tipo norte-americano, a República
reforçou o “fortalecimento das lealdades provinciais em detrimento
da lealdade nacional” (p. 81), de tal maneira que era comum a
análise de que, por consequência dessa arquitetura institucional, o
país acabaria se fragmentando. No entanto, a “unidade foi mantida
afinal, mas não se pode dizer que o novo regime tenha sido
considerado uma conquista popular e portanto um marco na criação de
uma identidade nacional. Pelo contrário, os movimentos populares da
época tiveram quase todos características antirrepublicanas” (p.
81).
Marcha acelerada (1930-1964)
O marco da mudança qualitativa da cidadania na história do Brasil
será o ano de 1930, quando, a partir de então, “houve aceleração
das mudanças sociais e políticas” (p. 87). A criação do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a extensa
legislação trabalhista e previdenciária são alguns dos exemplos.
Daí, a “legislação social não parou de ampliar seu alcance,
apesar dos grandes problemas financeiros e gerenciais que até hoje
afligem sua implementação” (p. 87).
Quanto aos direitos políticos, seu avanço foi mais complexo com a
inserção do país num período de instabilidade e de alternância
entre ditaduras e democracias. Enquanto isso, os progressos quanto
aos direitos civis foram lentos, pois “sua garantia na vida real
continuou precária para a grande maioria dos cidadãos” (p. 88).
No período ditatorial, os direitos à liberdade de expressão do
pensamento e de organização foram suspensos, assim como vários
outros, e o direito à organização sindical foi garantido sob o
guarda-chuva do Estado, num modelo corporativo que o vinculava ao
Executivo.
Quanto à identidade nacional, alguns episódios contribuíram para
seu progresso, como o movimento de 1930 e as campanhas nacionalistas
da década de 50, em especial em prol do monopólio estatal do
petróleo. O nacionalismo foi estimulado pelo Estado Novo e
consolidou-se como “o principal instrumento de promoção de uma
solidariedade nacional, acima das lealdades estaduais” (p. 88). Na
década de 50, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),
fundado no Rio de Janeiro, “foi o principal formulador e
propagandista do credo nacionalista” (p. 88).
1930: marco divisório
Do ponto de vista histórico, o ano de 1930 demarca a ruptura com o
modelo republicano sustentado pelas oligarquias regionais,
caracterizado como Primeira República. Seu último presidente,
Washington Luís, “foi deposto por um movimento armado dirigido por
civis e militares de três estados da federação, Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Paraíba” (p. 89).
Sua derrocada tem relação com fatores externos e internos, que
produziram impacto decisivo sobre a aliança das oligarquias. Entre
aqueles, a 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917 e a quebra
da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Quanto à dinâmica interna,
destaca-se a Semana de Arte de Moderna, de 1922, que desde o início,
“mesmo na versão puramente estética do movimento, (…) já
trazia em si uma crítica profunda ao mundo cultural dominante” (p.
92)
A derrubada da Primeira República assumiu simbolicamente contornos
mais avançados em relação à sua proclamação em 1889,
“(...) Em 1930, o movimento foi
precedido de uma eleição que, apesar das fraudes, levou o debate a
uma parcela da população. O assassinato do governo de Paraíba
introduziu um elemento de emoção totalmente ausente em 1889. A
mobilização revolucionária envolveu muitos civis nos estados
rebelados. No Rio Grande do Sul pode-se dizer que houve verdadeiro
entusiasmo cívico. O povo não esteve ausente como em 1889, não
assistiu 'bestializado' ao desenrolar dos acontecimentos. Foi ator no
drama, posto que coadjuvante.” (p. 96)
Ensaio de participação política (1930-1937)
Este foi um período de efervescência política, em que “só a
Regência, um século antes, e os anos inicias da República tinha
vivido situação situação parecida” (p. 97). A mobilização
envolveu vários estados e a própria capital do país, como também
numerosos grupos sociais, como os operários, a classe média, as
oligarquias, os segmentos industriais e os militares. Do ponto de
vista organizativo, surgiram inúmeros sindicatos e outras
associações de classes; partidos políticos foram fundados e “pela
primeira vez foram criados movimentos políticos de massa de âmbito
nacional” (p. 97-98).
Em 1932, a Revolução Constitucionalista, ocorrida em São Paulo,
“foi a mais importante guerra civil brasileira do século XX” (p.
100). A reivindicação dos paulistas se dava pelo “fim do governo
ditatorial e a convocação de eleições para escolher uma
assembleia constituinte” (p. 100). Embora de caráter conservador,
foi uma “impressionante demonstração de entusiasmo cívico” (p.
100), com grande mobilização popular e contribuição da indústria
ao esforço de guerra. Apesar da derrota militar, foram vitoriosos
politicamente, pois,
“(...) O governo federal
concordou em convocar eleições para a assembleia constituinte que
deveria eleger também o presidente da República. As eleições se
deram em 1933, sob novas regras eleitorais que representavam já
grande progresso em relação à Primeira República. Para reduzir as
fraudes, foi introduzido o voto secreto e criada uma justiça
eleitoral. (…) Houve também avanços na cidadania política. Pela
primeira vez, as mulheres ganharam direito ao voto.” (p. 101)
Com a Constituição, a luta política ganhou nova força. Dois
grandes movimentos políticos surgiram no período, à esquerda e à
direita. Daquele lado, a Aliança Nacional Libertadora (ANL),
liderada por Luís Carlos Prestes, orientada pela Terceira
Internacional. Deste, a Ação Integralista Brasileira (AIB), de
orientação política fascista e liderada por Plínio Salgado.
Em novembro de 1935, a ANL promoveu um levante que acabou
circunscrito a três capitais, Rio de Janeiro, Recife e Natal, com
foco nos quartéis e contanto com baixo envolvimento popular. Sem
dificuldade de reprimir o movimento, o governo fez dele bom uso,
tomando como “pretexto para expulsar do Exército os elementos mais
radicais e para exagerar o perigo de uma revolta comunista no país”
(p. 104). Foi criado, com o apoio do Congresso, um Tribunal de
Segurança Nacional cujo objetivo era julgar crimes políticos. Além
disso, a “ANL foi fechada e seus simpatizantes foram perseguidos”
(p. 105).
Em 1937, Getúlio Vargas instaurou a Ditadura do Estado Novo, numa
conjuntura em que,
“A aceitação do golpe indica
que os avanços democráticos posteriores a 1930 ainda eram muito
frágeis. A vida nacional sofrera uma sacudida, mas tanto as
convicções como as práticas democráticas ainda engatinhavam. A
oposição ao Estado Novo só ganhou força por efeito das mudanças
externas trazidas com o final da Segunda Guerra Mundial. De 1937 a
1945, o país viveu sob um regime ditatorial civil, garantido pelas
forças armadas, em que as manifestações políticas eram proibidas,
o governo legislava por decreto, a censura controlava a imprensa, os
cárceres se enchiam de inimigos do regime.” (p. 109)
Mesmo os integralistas foram alvo da repressão após tentarem um
golpe em 1938, cujo objetivo era efetuar a prisão de Getúlio Vargas
e assumir o Executivo. Tal como em 1935, “o golpe fracassou e deu
oportunidade ao governo para completar o expurgo das forças armadas”
(p. 109). Com isso, não restava dúvida sobre a natureza do regime,
paternalista e avesso às mobilizações de rua.
Os direitos sociais na dianteira (1930-1945)
Diferentemente dos direitos políticos, os direitos sociais avançaram
significativamente no período. A começar pela vasta legislação
trabalhista, que culminou com a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) de 1943. Tais avanços, no entanto, herdaram o pecado de
origem, dado que introduzidos num clima de baixa ou nula participação
política e de direitos civis ainda precários, de tal modo que “a
maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram
duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram
em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania
ativa” (p. 110). Wanderley Guilherme dos Santos classificou essa
característica como uma “cidadania regulada”.
Nessa legislação que constituiu a originalidade dos direitos
sociais no país, os trabalhadores rurais, os trabalhadores
domésticos e os autônomos estiveram à margem. Quanto aos
primeiros, destaca-se o peso que detinham na política os
proprietários rurais e quanto aos dois últimos, revela-se o “receio
de atingir a classe média urbana” (p. 123), quando aos
trabalhadores domésticos e à inexpressividade dos autônomos
enquanto agentes políticos que merecessem controle ou cooptação do
governo. Segundo o autor,
“(...) A ênfase nos direitos
sociais encontrava terreno fértil na cultura política da população,
sobretudo da população pobre dos centros urbanos. Essa população
crescia rapidamente graças à migração dos campos para as cidades
e do nordeste para o sul do país. O populismo era um fenômeno
urbano e refletia esse novo Brasil que surgia, ainda inseguro mas
distinto do Brasil rural da Primeira República, que dominara a vida
social e política até 1930. (…) Era avanço na cidadania, na
medida em que trazia as massas para a política. Mas, em
contrapartida, colocava os cidadãos em posição de dependência
perante os líderes, aos quais votavam lealdade pessoal pelos
benefícios que eles de fato ou supostamente lhes tinham distribuído.
A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não
fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas
como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A
cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa
e reivindicadora” (p. 126).
A vez dos direitos políticos (1945-1964)
Com a derrubada do governo de Vargas, o Brasil passaria por novas
eleições no final de 1945. Em dezembro, as eleições legislativas
e presidenciais elegeriam o novo chefe do Executivo e uma nova
assembleia constituinte, “a terceira desde a fundação da
República” (p. 126). O novo presidente eleito, general Eurico
Gaspar Dutra, tomou posse em janeiro de 46, ano em que também se
promulgou a nova constituição, marcando a primeira experiência
democrática da nossa história.
Com a Constituição de 1946, os direitos sociais do período
anterior foram mantidos e se garantiram os direitos civis e políticos
tradicionais. Até o golpe militar de 64, existia liberdade de
imprensa e também de organização política, além de eleições
regulares para presidente da República, senadores, deputados
federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores.
À exceção do Partido Comunista, cujo registro fora cassado em 47,
diversos partidos políticos foram constituídos e tiveram atuação
livre dentro e fora do Congresso Nacional.
No início da década de 60, várias organizações de diferentes
matizes ideológicas surgiram em um ambiente político marcado pela
radicalização. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
foi criado sob a tutela de empresários nacionais e estrangeiros; o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) fornecia apoio
financeiro a políticos de oposição e a sindicatos e movimentos
estudantis contrários ao governo; a Ação Democrática Parlamentar
(ADP) reunia em torno de si deputados conservadores de diferentes
partidos. Assentavam-se sobre o anticomunismo e, alinhados com outras
organizações como a Igreja Católica, associações de
proprietários rurais, de comércio e da indústria e a Escola
Superior de Guerra (ESG) fomentavam o golpe que viria a seguir.
Por outro lado, a União Nacional dos Estudantes (UNE) ganhava maior
dinamismo e influência, envolvendo-se “em todas as grandes
negociações políticas, frequentemente com o apoio do Ministério
da Educação” (p. 137). No mesmo período, setores da Igreja
Católica começaram “a abandonar sua tradicional posição
política reacionária e investia no movimento estudantil, no
movimento operário e camponês, na educação de base” (p. 138).
José Murilo de Carvalho descreve uma nova novidade que surgia na
luta política.
“(...) Pela primeira vez na
história do país, excetuando-se as revoltas camponesas do século
XIX, os trabalhadores rurais, posseiros e pequenos proprietários
entraram na política nacional com voz própria. O movimento começou
no Nordeste em 1955, sob o nome de Ligas Camponesas. Ganhou
notoriedade com a adesão de um advogado e deputado com grande
talento mobilizador, Francisco Julião. Sociedades civis, as Ligas
escapavam à legislação sindical e, portanto, ao controle do
Ministério do Trabalho. Mas ficavam também fora da proteção das
leis trabalhistas, fato que lhes trouxe dificuldade na competição
com os sindicatos.” (p. 138)
Como resultado desse movimento, o Estatuto do Trabalhador Rural foi
promulgado em 1963, resultando na extensão dos direitos sociais e
sindicais ao campo. Com a desburocratização para formação dos
sindicatos rurais, ampliou-se a influência da esquerda, da Igreja e
da Ação Popular (AP) sobre o sindicalismo rural. Em 1964, foi
criada a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag),
que “já englobava 26 federações e 263 sindicatos reconhecidos
pelo Ministério” (p. 139) com mais 500 que aguardavam serem
reconhecidos.
Crescia a pressão popular por reformas estruturantes. João Goulart
“achava-se imprensado entre os conspiradores de direita, que o
queriam derrubar, e os setores radicais da esquerda, que o empurravam
na direção de medidas cada vez mais ousadas” (p. 141). O
presidente cedeu à esquerda e “concordou em realizar grandes
comícios populares como meio de pressionar o Congresso a aprovar as
'reformas de base'” (p. 141), realizando-o em março de 1964, em
frente à Central do Brasil.
Nesse grande comício, calcula-se a participação popular em 150 mil
pessoas. As lideranças sociais reivindicam reformas e constituinte.
O presidente fez seu discurso e, a seguir, “assinou dois decretos,
um deles nacionalizando uma refinaria de petróleo, o outro
desapropriando terras às margens de ferrovias e rodovias federais e
de barragens de irrigação” (p. 141). Em particular, este último
elevava o tencionamento com os proprietários rurais.
O golpe, marcado para o dia 2 de abril, fora antecipado após a
presença de Goulart em uma reunião de sargentos da Polícia Militar
do Rio de Janeiro, em que fez um discurso contundente, radicalizando
no discurso. No dia 2 de abril, a classe média estava nas ruas
celebrando a queda do presidente. Segundo José Murilo de Carvalho,
isso demonstrava a fraqueza do movimento social.
“No auge da crise, revelou-se com
nitidez a natureza de cúpula da organização sindical. Os
confiantes dirigentes sindicais convocaram uma greve geral para o dia
31 de março em oposição ao golpe. Seu apelo não foi ouvido. As
grandes massas em nome das quais falavam os líderes não apareceram
para defender o governo. As que apareceram foram as da classe média,
no dia 2 de abril, para celebrar a queda do presidente. A grande
mobilização política por que passara o país acabava em um
verdadeiro anticlímax. Apesar do barulho feito, via-se agora que o
movimento popular era um castelo de cartas.” (p. 144)
Passo atrás, passo adiante
O golpe de 64 assemelhava-se ao de 37 enquanto resposta à elevação
da participação política, restringindo-se os direitos civis e
políticos. Para Carvalho, “os dois períodos se assemelham ainda
pela ênfase dada aos direitos sociais, agora estendidos aos
trabalhadores rurais, e pela forte atuação do Estado na promoção
do desenvolvimento econômico” (p. 157). A diferença entre ambos,
se daria pelo funcionamento do Congresso e pela realização de
eleições pós-64.
O autor divide o período militar em três fases. O primeiro, de 64 a
68, compreende os governos de Castelo Branco e o primeiro de Costa e
Silva, é caracterizado “por intensa atividade repressiva seguida
de sinais de abrandamento” (p. 157). Quanto à economia, foi
marcado pelo combate à inflação, queda acentuada do salário
mínimo e crescimento baixo. O domínio político foi dos “setores
mais liberais das forças armadas, representados pelo general Castelo
Branco” (p. 157).
A segunda fase segue de 68 ao ano de 74, período “mais sombrio da
história do país, do ponto de vista dos direitos civis e políticos”
(p. 157). Correspondeu ao domínio militar mais truculento, sob a
autoridade do general Garrastazu Médici, em que chegou-se ao ápice
da violência tal como de crescimento econômico. O salário mínimo
continuou a cair.
A terceira e última fase, iniciada em 74 com a posse do general
Ernesto Geisel, termina em 85, após a vitória de Tancredo Neves à
presidência em eleição indireta. Sua marca é representava pela
“tentativa do general Geisel de liberalizar o sistema, contra a
forte oposição dos órgãos de repressão” (p. 157). Após a
crise do petróleo de 73, a economia perde força chegando a índices
de crescimento negativos no começo da década de 80.
Durante a ditadura militar, ocorrera uma expansão veloz da economia
e com ela o migração da população do campo para as cidades. Se em
1960, a população urbana era de 44,7% do total, em 1980 ela passara
a ser de 67,6%. Tais mudanças na sociedade tiveram efeitos
catastróficos para as grandes cidades, percebidas apenas mais
posteriormente.
Passo adiante: voltam os direitos civis e políticos (1974-1985)
A inovação na articulação e na ação política viera “sobretudo
dos operários de setores novos da economia que tinham se expandido
durante o 'milagre' do período Médici: os de bens de consumo
durável e de bens de capital” (p. 180). Ao lado do novo
sindicalismo, organizado a partir de sua base e não da cúpula, a
outra inovação fora a criação do Partido dos Trabalhadores.
Destaca o autor que,
“O novo movimento distinguia-se
do sindicalismo herdeiro do Estado Novo em vários pontos. Um deles é
o de ser organizado de baixo para cima, de começar na fábrica, sob
a liderança de operários que vinham das linhas de produção, em
contraste com a estrutura burocratizada dominada pelos pelegos.
Grande ênfase era dada às comissões de fábrica e aos delegados
sindicais que funcionavam dentro das fábricas. As decisões finais
eram tomadas em grandes assembleias que reuniam às vezes até 150
mil operários, e não por pequenos comitês de dirigentes. Os novos
líderes tinham grande carisma, sobretudo Luís Inácio da Silva,
Lula, que se tornou um dos principais nomes da vida política
nacional. Outra característica do novo sindicalismo, em contraste
radical com o antigo sistema, era a insistência em se manter
independente do controle do Estado. Não era movimento paralelo ao
anterior: buscava transformar o sistema antigo em representação
autêntica do operariado. Essa tendência consolidou-se com a
formação de organizações sindicais nacionais. (…)” (p.
180-181)
Com o fracasso da guerrilha dos anos 70, “desapareceram as várias
organizações militarizadas formadas a partir de 1968” (p. 182).
Em seu lugar, surgiram diversas “organizações, civis ou
religiosas, cujas finalidades nem sempre eram diretamente políticas,
mas que tinham a vantagem de um contato estreito com as bases, o que
não se dava com os grupos guerrilheiros” (p. 182-183).
Organizam-se também movimentos sociais urbanos, como os movimentos
de favelados e associações de moradores de classe média, cujo foco
se dava em torno dos problemas da vida cotidiana, cuja tática
recorrente era a relação com as administrações municipais.
O pico da mobilização popular foi alcançada através da campanha
por eleições diretas, no ano de 84. Com as eleições previstas
para janeiro de 1985, as forças de oposição “decidiram ir além
do simples lançamento de um candidato que competisse simbolicamente
com o candidato oficial” (p. 188). Liderado pelo PMDB e aglutinando
partidos de oposição e organizações como CNBB, OAB e ABI, as
ruas foram tomadas pela defesa das eleições diretas para
presidente. Para se tornar realidade, o Congresso deveria aprovar uma
emenda por dois terços do voto.
As mobilizações pelas Diretas Já foram importante exercício
cívico nacional, reunindo líderes dos partidos políticos de
oposição, de associações como a ABI, UNE e OAB, jogadores de
futebol, cantores e artistas de televisão. O verde e amarelo da
bandeira ganhavam as roupas, faixas e bandeiras, além do hino
nacional que “foi revalorizado e reconquistado pelo povo” (p.
189), num momento emocionante da história do país.
Apesar de rejeitada a proposta das eleições diretas no Congresso
Nacional e o sentimento de frustração com a morte de Tancredo
Neves, eleito primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura
militar, “os brasileiros iniciaram o que se chamou de 'Nova
República' com o sentimento de terem participado de uma grande
transformação nacional, de terem colaborado na criação de um país
novo” (p. 193). Uma euforia semelhante à da conquista da Copa de
70, do slogan “Brasil: Ame-o ou deixe-o”, quando inúmeros
brasileiros sofriam com a repressão.
A cidadania após a redemocratização
José Murilo de Carvalho destaca alguns aspectos da Constituição de
1988, tais como o direito de voto aos analfabetos, que somavam na
década de 90 aproximadamente 30 milhões de pessoas no país. Quanto
ao ambiente democrático, o surgimento do Movimento dos Sem Terra
(MST), incorporando à luta política “parcela importante da
população, tradicionalmente excluída pela força do latifúndio”
(p. 203).
Outros antigos problemas ganhavam força no noticiário, em especial
o problema da corrupção. Há ainda o peso negativo que exerce as
polícia militar, que “tem-se revelado inadequada para garantir a
segurança do cidadão” (p. 213). Segundo o autor, o soldado da
polícia é “preparado para combater e destruir inimigos e não
para proteger cidadãos” (p. 213). A situação torna-se ainda pior
diante de um judiciário moroso, caso e que induz a população a
acreditar que a justiça só beneficia os mais ricos.
Conclusão: a cidadania na encruzilhada
Segundo Carvalho, reforça as dificuldades da cidadania no país o
percurso pelo qual ela trilhou, em uma trajetória invertida da dos
demais países,
“(...) Aqui, primeiro vieram os
direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos
políticos e de redução dos direitos civis por um diretor que se
tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira
também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro
período ditatorial, em que os órgãos de representação política
foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda
hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall,
continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos
direitos foi colocada de cabeça para baixo” (p. 219-220)
Dentre os problemas para eficácia democrática, resultante da
inversão da sequência, é a supervalorização do Poder Executivo.
“Se os direitos sociais foram
implantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava
fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da
população, da centralidade do Executivo. (…) Essa orientação
para o Executivo reforça longa tradição portuguesa, ou ibérica, o
patrimonialismo. O Estado é sempre visto como todo-poderoso, na pior
hipótese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um
distribuidor paternalistas de empregos e favores. A ação política
nessa visão é sobretudo orientada para a negociação direta com o
governo, sem passar pela mediação da representação. (…) Essa
cultura orientada mais para o Estado do que para a representação é
o que chamamos de 'estadania' em contraste com a cidadania.” (p.
221)
Reforça a cultura política governista, voltada ao Estado, a partir
dessa inversão de direitos, o corporativismo dos interesses
coletivos, herdado do Estado Novo, em os “benefícios sociais não
eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação
de cada categoria com o governo” (p. 224), levando a sociedade a se
organizar em defesa de seus direitos e privilégios a partir do
Estado. Com a redemocratização, nota-se “a força das grandes
corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais
operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação
de privilégios ou em busca de novos fatores” (p. 224).
Dentre as mudanças provocadas pela queda da União Soviética, do
crescente movimento de minorias nos Estados Unidos, e diante da
globalização em ritmo acelerado, as mudanças tem provocado,
“(...) a redução do papel
central do Estado como fonte de direitos e como arena de
participação, e o deslocamento da nação como principal fonte de
identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de um desafio à
instituição do Estado-nação. A redução do papel do Estado em
benefício de organismos e mecanismos de controle internacionais tem
impacto direto sobre os direitos políticos. Na União Europeia, os
governos nacionais perdem poder e relevância diante dos órgãos
políticos e burocráticos supranacionais. Os cidadãos ficam cada
vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas.
Grandes decisões políticas e econômicas são tomadas fora do
âmbito nacional.” (p. 225)
Nos Estados Unidos, os movimentos de minorias “contribuíram (…)
para minar a identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades
culturais baseadas em gênero, etnia, opções sexuais, etc.” (p.
226), enfraquecendo o poder do Estado e fragmentação a identidade
nacional.
Aqui, a inversão na sequência dos direitos, “reforço entre nós
a supremacia do Estado” (p. 227). José Murilo de Carvalho sugere,
então, a importância de “reforçar a organização da sociedade
para dar embasamento social ao político, isto é, para democratizar
o poder” (p. 227). A sociedade deve se organizar para superar o
Estado clientelista, corporativista e colonizado e não contra o
Estado em si. Nesse sentido, há diversos exemplos de organizações
que surgem na sociedade e atuam no envolvendo com as políticas
públicas, seja na formulação ou mesmo na execução delas.
Por fim, adverte o hoje que a “desigualdade é a escravidão de
hoje, o câncer que impede a constituição de uma sociedade
democrática. A escravidão foi abolida após 65 anos após a
advertência de José Bonifácio. A precária democracia de hoje não
sobreviveria a espera tão longa para extirpar o câncer da
desigualdade” (p. 229)
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