sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Comunidade e Democracia - A experiência da Itália moderna (Robert Putnam, 1996)

Na década de 70, um viajante que percorresse os 870 quilômetros que separam Seveso, na parte setentrional da Itália, de Pietrapertosa, no norte, se impressionaria com a mudança de paisagens que conformavam a transição de uma região pós-industrial a outra que estacionara no tempo. Norte e Sul do país representavam divisões geográficas cuja oposição mais contrastante era o abismo que as separavam em relação ao desenvolvimento.
Robert D. Putnam (1941 - )
Nesse período, o governo nacional implementou, após intensa e prolongada disputa política que pendeu em favor dos regionalistas, uma reforma institucional que ensejaria a descentralização administrativa por meio da constituição de 15 novos governos regionais, cujas estruturas e mandatos constitucionais se assemelhavam entre si. Outras cinco regiões “especiais”, alvos de movimentos separatistas no final da 2ª Guerra Mundial, já haviam sido criadas antes.

Esse foi o cenário escolhido por Robert D. Putnam para analisar os fatores inerentes à qualidade do desempenho institucional. Questiona o autor “de que modo as instituições formais influenciam a prática da política e do governo? Mudando-se as instituições, mudam-se também as práticas? O desempenho de uma instituição depende do contexto social, econômico e cultural? Se transplantarmos as instituições democráticas, elas se desenvolverão no novo ambiente tal como no antigo? Ou será que a qualidade de uma democracia depende da qualidade de seus cidadãos, e portanto cada povo tem o governo que merece?” (p. 19) Essas e outras questões serão respondidas em um estudo profundo e instigante que demandou duas décadas para conclusão.

Nos anos 70 até o início da última década do século XX, Putnam observou de perto a evolução das instituições regionais. Em suas visitas, chama-lhe atenção as diferenças entre as regiões. Na Emilia-Romagna, ao norte, “o prédio de vidro da sede regional é como entrar numa moderna firma high-tech. Uma recepcionista diligente e cortês encaminha os visitantes à sala apropriada, onde certamente o funcionário encarregado chamará no computador os dados referentes a problemas e políticas regionais” (p. 21-22). Já no governo regional da Puglia, na capital de Bari, encontrar o funcionário do governo regional exigia esforço até mesmo para os moradores da cidade.

Diante desse contraste de desempenho, “a questão central que se coloca (...) é a seguinte: Quais são as condições necessárias para criar instituições fortes, responsáveis e eficazes?” (p. 22). Segundo Putnam, essa resposta, a experiência do nascimento e desenvolvimento do regionalismo institucional italiano poderia oferecer.

Ao verificar a qualidade das instituições regionais na Itália, o autor as seleciona a partir de contextos que são particulares a cada uma. A Basilicata de Pietrapertosa, por exemplo, assemelhava-se a uma região do Terceiro Mundo, enquanto a Lombardia de Seveso estava prestes a se pós-industrializar. Há também as tradições políticas que as distinguem: Venécia e Emilia-Romagna apresentam um perfil econômico semelhante, mas a primeira era fervorosamente católica, enquanto a segunda era classificada de “Cinturão Vermelho” por estar sob controle do comunistas desde 1945.

Seria possível afirmar que as instituições teriam desenvolvimento idêntico em espaços tão diferentes como Seveso e Pietrapertosa? Em caso negativo, por que isso não aconteceria? Quais são os limites teóricos dos “novos institucionalistas” que seriam possíveis de serem identificados na pesquisa no que concerne à capacidade dos governos regionais de transformar a qualidade da política?

Mudança das regras: duas décadas de desenvolvimento institucional

Quais são os impactos proporcionados pelas reformas institucionais? Ao estudar a Itália da década de 70, essa pergunta ganhava ainda mais sentido pelas “esperanças de democratização” (p. 33) que ganhava corpo em várias partes do mundo. Dentre os países que superaram o Estado autoritário, “eventuais reformadores se veem diante de um enigma: saber se a mudança nas regras do jogo surtirá os efeitos desejados – se é que surtirá algum efeito – no modo em que realmente ele é jogado” (p. 33).

A pergunta lançada por Putnam neste capítulo refere-se à existência de eventuais mudanças proporcionadas nas práticas dos atores políticos e se houve impacto sobre as rotinas governamentais da Itália. A questão é: houve alteração perceptível?

Putnam foi buscar no século 19, quando ocorreu a unificação italiana pelos monarquistas piemonteses, as raízes contemporâneas para o Estado centralizador em um país caracterizado por suas fortes identidades regionais e locais. Naquele período, o “modelo franco-napoleônico, altamente centralizado, era a última palavra em ciência administrativa. A seu ver, uma forte autoridade central era a solução necessária para a débil integração do novo Estado-nação” (p. 34). Os poucos que defendiam a criação de governos regionais autônomos foram vencidos no debate.

Essa centralização proporcionou um domínio absoluto do governo nacional sediado em Roma. O autor destaca que as “altas autoridades eram designadas pelo governo nacional” (p. 34) e que prevalecia a existência de “prefeitos fortes, nos moldes do sistema francês” (p. 35) que “controlavam o funcionalismo e as políticas dos governos locais, aprovando todas as posturas, orçamentos e contratos, não raro em seus mínimos detalhes. A maioria das esferas da políticas públicas, da agricultura à educação, passando pelo planejamento urbano, era gerida por altos funcionários da burocracia romana” (p. 35).

Tal modelo, altamente centralizado, ajustava-se às acomodações políticas da Itália. O trasformismo surgiu como um modelo de práticas políticas cuja mediação entre os líderes nacionais e notáveis locais se realizava pelo clientelismo. Segundo Putnam, “o trasformismo permitia que as elites locais e os representantes nacionais barganhassem interesses locais e diretrizes nacionais em troca de apoio eleitoral e parlamentar” (p. 35).

Somente com o fim da II Guerra Mundial é que será possível transformar esse quadro. O avanço da democracia e a insatisfação dos movimentos locais com a intensa centralização administrativa permitiram a rearticulação do sentimento regionalista. Canalizarão esse ímpeto “tanto democratas cristãos de centro-direita quanto socialistas e comunistas à esquerda” (p. 35) que, em geral, empunhavam a bandeira da descentralização. A pressão funcionara: Em 1948, a nova Constituição italiana estabelecia eleições diretas para governos regionais.

Com as transformações sociais e econômicas do pós-guerra, a Itália vivia um momento especial pelos ganhos na indústria, simbolizado pela redução da participação do campo no mundo do trabalho, que “despencou de 42 para 17% na metade do tempo requerido por mudanças semelhantes ocorridas em outros lugares ao longo da história econômica do Ocidente” (p. 35). Entre as décadas de 50 e 70, “a economia cresceu mais depressa do que nunca na história italiana e mais depressa do que em qualquer outro país ocidental” (p. 35). Nesse ínterim, tanto a política quanto o governo ficaram para trás.

Segundo Putnam, “a esclerose cada vez mais frustrante da administração central italiana, um novo interesse pelo planejamento regional e uma guinada à esquerda na política nacional se combinaram para trazer novamente à baila a questão dos governos regionais” (p. 36). No início de 68, o Parlamento, após uma pressão articulada da oposição - que obstruiu o legislativo -, aprovou uma lei que criou mecanismos eleitorais para as regiões ordinárias. Já em 70, foi aprovado “um projeto de lei dispondo sobre finanças regionais, o qual permitir eleger (...) os primeiros conselhos regionais” (p. 36).

A princípio, as regiões enfrentaram diversos obstáculos para assumir seu papel na política italiana. Somente em abril de 1972 é que o governo central decretou a transferência de poderes, recursos e funcionários para as regiões, possibilitando que essas desempenhassem, a partir de então, sua função institucional. Esse não foi um processo linear, pois uma articulação de “políticos nacionais conservadores, uma burocracia nacional fortemente arraigada e um Judiciário tradicionalista combinaram-se para impor às regiões inúmeras restrições de ordem legal, administrativa e fiscal” (p.36-37), dentre essas, à que previa a alocação de despesas às regiões, praticamente semelhante entre 73 e 75, enquanto as da burocracia central seriam elevadas em 20%.

Somente em 1977, “numa longa série de reuniões entre representantes dos principais partidos (…) chegou-se a um acordo quanto ao pacote de medidas (os chamados 616 decretos) que desmantelava a burocracia nacional, transferindo às regiões 20 mil postos, inclusive parte considerável de vários ministérios, como o Ministério da Agricultura, e também centenas de departamentos sociais semipúblicos” (p. 38).

A princípio, essa incipiente experiência regional ocupou-se de políticas distributivas (crédito para cooperativas agrícolas, bolsas para estudantes carentes, assistência a deficientes, subsídios para ônibus interurbanos, subvenções para o Scala, etc), mas em certas regiões surgiram reformas em áreas como a proteção ambiental, o planejamento urbano e os caóticos serviços sociais e de saúde. Como consequência dessas iniciativas, “a maioria dos especialistas concordou em que o planejamento urbano melhorou sensivelmente depois que a responsabilidade por essa função foi transferida do centro para as regiões” (p. 41).

Elite Política Regional: “Um novo modo de fazer política”

O dado que mais chama a atenção de Putnam a respeito das transformações da ação política provocadas pelas novas instituições regionais, foi a redução do embate ideológico e a edificação de uma relação mais pragmática da coisa pública. Esse esfriamento do debate ideológico não foi acompanhado, a princípio, pelo sentimento dos eleitores comuns. Somente na década de 80 é que haverá redução do sectarismo em camadas mais expressivas da população. Para o autor, embora sejam necessárias mais pesquisas para analisar a relação entre causa e efeito, essa “cronologia condiz com a interpretação de que a despolarização da política italiana foi iniciativa da elite”(p. 44).

Entre os conselheiros regionais, verificou-se empiricamente uma mudança de subjetividade no interregno entre 1970 e 1982, passando esses a “ver-se menos como mediadores e mais como responsáveis, menos como tribunos eloquentes das causas populares e mais como defensores competentes do interesse público” (p. 49). Essa conclusão, corroborada por uma série de entrevistas realizadas para a pesquisa, reforça a ideia, apontada por Putnam, de que após “uma década de governo regional, os líderes regionais haviam se tornando menos teóricos e utópicos e menos preocupados em defender os interesses de certos grupos regionais em detrimento de outros” (p. 49), passando para o primeiro plano a preocupação com as “práticas de cunho administrativo, legislativo e financeiro” (p. 49).

A razão fundante pela qual se operou essa mudança de mentalidade na política regional italiana é interpretada como resultado da “socialização institucional” (p. 52), que proporcionou o envolvimento dos protagonistas políticos nas práticas governativas das regiões, levando esses atores “a trocarem o dogmatismo ideológico por um pragmatismo mais consensual” (p. 52). Verificou-se que, com o tempo, conselheiros que demonstravam alto grau de extremismo ideológico foram moderando o discurso.

Essa conclusão apontada pela realidade italiana responde à pergunta feita no início do primeiro capítulo: “As reformas institucionais influenciam sobre o resultado da política?” (p. 19). A julgar pela socialização institucional e pelas responsabilidades assumidas pelos atores políticos quanto aos governos regionais, cujo resultado foi a relação mais pragmática e menos ideológica dos conselheiros, a resposta é afirmativa.

Avaliação do Desempenho Institucional e Avaliação do Eleitorado

Um requisito básico na análise dos dados que indicam a valoração do desempenho institucional das regiões italianas é a compreensão de que, por se tratar de governos representativos, é essencial que sua qualidade seja medida pela “sensibilidade às demandas do eleitorado e sua eficiência na gestão da coisa pública” (p. 77).

Putnam elencou quatro fatores de análise: a) abrangência; b) coerência interna; c) confiança e d) correspondência com os objetivos e critérios dos protagonistas e dos membros da instituição. Em cada governo regional, foram analisados a continuidade administrativa, as deliberações sobre as políticas e a implementação das políticas. Os indicadores correspondentes ao desempenho institucional, 12 ao total, foram divididos em: 1. estabilidade do gabinete; 2. presteza orçamentária; 3. serviços estatísticos e de informação; 4. legislação reformadora; 5. inovação legislativa; 6. creches; 7. clínicas familiares; 8. instrumentos de política industrial; 9. capacidade de efetuar gastos na agricultura; 10. gastos com unidade sanitária local; 11. habitação e desenvolvimento urbano; e 12. sensibilidade da burocracia.
A análise desses índices demonstrou diferenças essenciais entre o desempenho das regiões e, coerentemente, essas diferenças corresponderam também à própria percepção da sociedade em relação aos governos. Quando os índices, numa média geral, eram altos, também a aprovação pela população era alta. Ao mesmo tempo, índices de qualidade governamental baixos indicaram reduzido apoio popular. É, portanto, possível dizer que os governos que “adotam leis inovadoras, implementam seus orçamentos como o planejado, constroem creches, respondem às cartas que lhes são enviadas e assim por diante gozam de maior popularidade entre o eleitorado do que os que não o fazem” (p. 90).

Cai por terra, segundo Putnam, aquele famoso ditado que afirma que cada povo tem o governo que merece. Na medida em que as pessoas avaliam positivamente governos cujos índices de desempenho são altos, e negativamente aqueles cujos mesmos índices são baixos, o relativismo cultural que dá vazão à expressão popular perde sentido.

A partir desses dados, o estudo sobre o desempenho institucional prossegue com a seguinte questão: o que explica essas diferenças no desempenho institucional? Por que algumas regiões são mais eficientes do que outras?

Explicação do desempenho institucional

O autor elenca duas possibilidades genéricas para justificar a variação do desempenho institucional, sendo essas: a) a modernidade econômica, com o advento da revolução industrial; e b) a comunidade cívica, representada pelos padrões de participação cívica e de solidariedade social. Putnam destaca a importância da revolução industrial para elevação dos padrões de vida, de avanço da economia e da tecnologia e, dentre outros, dos níveis de educação e volume de capital.

Há uma defesa dos sociólogos de que “as perspectivas de um governo democrático estável dependem dessa transformação social e econômica” (p. 97) pela qual a Itália passou a partir do final do século XIX. Com suas nuances regionais, na viagem citada logo no início, de Seveso a Pietrapertosa, verifica-se que “o Norte é bem mais adiantado do que o Sul” (p. 98).

Esse não é um contraste que se exprime exclusivamente pela forma como se reparte os recursos públicos. Putnam destaca que, na Itália, “as autoridades centrais alocam verbas a esses governos de acordo com uma fórmula redistributiva que favorece as regiões mais pobres” (p. 100), mas que, ainda assim, “muitas das regiões mais atrasadas dispõem de mais recursos do que são capazes de despender”.

Comunidade cívica: algumas especulações teóricas

O que se denomina de “comunidade cívica”, para efeito deste estudo, refere-se a quatro elementos interligados, que são: a) participação cívica; b) igualdade política; c) solidariedade e confiança; e d) associações: estruturas sociais da cooperação.

A participação diz respeito à presença “nos negócios públicos” (p. 101), muito embora nem toda participação possa ser considerada virtuosa, colaboradora com o bem geral. Na conceituação de igualdade política Putnam preceitua que “tal comunidade será tanto mais cívica quanto mais a política se aproximar do ideal de igualdade política entre cidadãos que seguem as regras de reciprocidade e participam do governo” (p. 102). A formulação sobre relações de solidariedade, confiança e tolerância evoca que essas “permitem à comunidade cívica superar mais facilmente o que os economistas chamam de 'oportunismo', no qual os interesses comuns não prevalecem porque o indivíduo, por desconfiança, prefere agir isoladamente e não coletivamente” (p. 102). Em associações, o autor evidencia o papel que desempenham para incutir “em seus membros hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público” (p. 102).

Como essas questões se verificam na prática? Quais são as “evidências sistemáticas [que] existem dos padrões de solidariedade social e participação cívica?” (p. 105). O autor destaca quatro. Segundo ele, “um indicador básico da sociabilidade ativa é a vibração da vida associativa” (p. 105), reforçado pelo “público leitor de jornais” (p. 106), destacando que a variação de famílias “em que pelo menos um de seus membros lia um jornal diário variava de 80% na Ligúria a 35% em Molise”, regiões respectivamente mais e menos cívica. Também a participação da população nas eleições constitui-se num dado empírico relevante ao demonstrar que nas regiões de desempenho institucional baixo, os eleitores votam em quantidade maior nas eleições personalizadas e em número menor nos plebiscitos, por onde são decididas as questões públicas. O autor reforça os dados ao afirmar que, nestas regiões de baixo capital social, “os cidadãos se deixam envolver pelo clientelismo. Geralmente eles deixam passar a oportunidade de manifestar-se sobre as questões públicas, uma vez que consideram o voto basicamente uma troca numa relação de dependência imediatista e altamente personalizada” (p. 109).

Interligando os fatores acima elencados: a) participação maciça em plebiscitos; b) inexpressividade do voto preferencial; c) consistente rede de associações; e d) grande número de leitores de jornais; e combinando-os em um só índice de comunidade cívica, verifica-se que “existe de fato uma estreita correlação entre os nossos quatro indicadores, na medida em que as regiões onde é maciço o comparecimento às urnas nos referendos e inexpressivo o uso do voto preferencial são praticamente as mesmas onde existem uma densa rede de associações civis e um elevado número de eleitores de jornais” (p. 110).

Um exemplo disso são as regiões da Emilia-Romagna, ao norte, mais cívica; e da Calábria, ao sul, menos cívica. Naquela, “os cidadãos participam ativamente de todo tipo de associações locais – grêmios literários, orfeões locais, clubes de caçadores e assim por diante. Acompanham com interesse os assuntos cívicos veiculados na imprensa local e envolvem-se na política por nutrirem convicções programáticas” (p. 110-111). Na Calábria, no entanto, “os eleitores comparem às urnas não para se manifestar sobre as questões públicas, mas por causa das relações hierárquicas de clientelismo. A inexistência de associações cívicas e a escassez de meios de comunicação locais nestas últimas regiões significam que os cidadãos raramente se envolvem nos assuntos comunitários” (p. 111).

É numa comparação gráfica em que Putnam destaca de um lado o desempenho econômico e do outro o desempenho cívico, ambos frente ao desempenho institucional, que ele desenvolve sua teoria de que “a comunidade cívica é um determinante mais forte que o desenvolvimento econômico para o desempenho institucional” (p. 113). No gráfico do desempenho econômico, a coerência com o desempenho institucional é inferior quando a comparação é feita com o grau de comunidade cívica – quer dizer, quanto menos cívica a região menor é seu desempenho institucional, algo que não é possível dizer com a mesma exatidão quando a referência é o desempenho econômico.

Vida social e política na comunidade cívica

Putnam estudou a relação entre os cidadãos e os políticos como forma de compreender como se estabelece a vida social e política na comunidade cívica. Nas regiões mais cívicas, essa relação tende a ser desenvolvida a partir de interesses mais gerais. Já nas menos cívicas, a busca por interesses particulares é de uma incidência muito maior. Na Emília, por exemplo, “é mais provável que os contatos [entre políticos e cidadãos] digam respeito a assuntos legais ou da administração” (p. 115) enquanto que na Puglia ou Basilicata, “um conselheiro recebe diariamente cerca de oito a 10 pedidos de emprego ou outros favores, contra cerca de um pedido desses por dia na Emilia-Romagna” (p. 115).

O reflexo dessas diferenças também se estende ao perfil dos dirigentes políticos. Enquanto na Puglia e na Basilicata, somente 13% dos conselheiros não têm formação universitária, no Norte, onde as regiões são mais cívicas, esse índice varia entre 33 e 40%. Cabe destacar que o índice de habitantes com nível superior, entre o Sul e Norte, é bastante semelhante (2,6% naquela região e 2,9% nesta). Regiões menos cívicas têm uma composição mais elitizada de dirigentes políticos.

Outras explicações para o bom desempenho institucional

Além dos fatores econômicos e da comunidade cívica, Putnam estudou também as seguintes variáveis para avaliar o desempenho institucional das regiões italianas: a) polarização ideológica do sistema partidário; b) opinião dos leitores sobre importantes questões sociais e econômicas; c) fragmentação do sistema partidário regional; d) dados sobre conflitos econômicos; e e) disparidades geográficas no tocante ao desenvolvimento econômico e à demografia de cada região.

Segundo o autor, “nenhuma dessas investigações (…) ofereceu o menor respaldo à teoria de que o conflito social e político é incompatível com o bom governo” (p. 130), ressaltando que há regiões com alto nível de conflito e baixo desempenho institucional, como também de alto nível de conflito e alto desempenho institucional. Verificou-se também regiões com baixo nível de conflito e baixo desempenho institucional e, por fim, outras com baixo nível de conflito e alto desempenho institucional. Constatou-se, assim, que “a comunidade cívica não é em absoluto harmoniosa nem tipicamente livre de tensões” (p. 130).

No caso da educação, Putnam identificou regiões com índices de escolarização semelhante, mas com graus de desempenho institucional contrastantes entre si. Reconhece, neste caso, que “a educação deve ter cumprido importante papel no fortalecimento dos alicerces da comunidade cívica, mas hoje parece que não tem nenhuma influência direta no desempenho governamental” (p. 131).

A única incógnita na pesquisa ficou por conta do papel exercido pelo Partido Comunista Italiano (PCI). Nesta hipótese, reconheceu-se uma possível “exceção parcial” dos governos liderados pelo PCI, o qual proporcionou uma elevação do desempenho institucional onde assumiu o poder.

Origens da comunidade cívica

O autor viaja no tempo mil anos atrás para constatar as origens que permitiram diferenças de padrão cívico entre as regiões italianas. Foi no período medieval que “a Itália criara as estruturas políticas mais adiantadas do mundo cristão” (p. 133). É nesse momento que se constituirão “em diferentes partes da península dois regimes políticos nitidamente distintos e igualmente inovadores, que vieram a ter amplas consequências sociais e políticas” (p. 133).

Tanto o sistema bizantino no Sul, quanto o germânico no Norte, após a fase de debilidade, passaram a ser comandadas por forças locais. No caso do Sul, “o colapso do governo central foi relativamente curto, tendo surgido um poderoso reino normando alicerçado por tradições bizantinas e árabes” (p. 133). No Norte, prevaleceu “quase que inteiramente o princípio da autonomia local. Nessa região, que se estende de Roma até os Alpes, as características da sociedade italiana medieval puderam evoluir mais plenamente; lá as comunas se tornaram verdadeiras cidades-Estados, de modo que a região pode com propriedade ser denominada Itália comunal” (p. 133).

No Sul, “os reis normandos patrocinaram um extraordinário florescimento das artes grega, árabe, judaica, latina e italiana, bem como da arquitetura e das ciências” (p. 133-134). Foi em Nápoles, em 1224, que surgiu a primeira universidade pública europeia, enquanto que na Sicília estava a burocracia mais adianta do mundo ocidental. Apesar disso, no campo político e social, o modelo sulista era estritamente autocrático, onde se afirmava o “monopólio da monarquia sobre a provisão da justiça e da ordem pública, bem como um enfático endosso aos privilégios da nobreza feudal” (p. 134).

Na sequência, com a morte do rei Frederico, “o poder real começou a decair, os barões do Sul ganharam poder e autonomia, porém o mesmo não ocorreu com as cidades da região. Com o passar dos séculos, a pronunciada hierarquia social tornou-se mais e mais dominada por uma aristocracia rural dotada de poderes feudais, enquanto na base as massas camponesas penavam miseravelmente nos limites da sobrevivência física” (p. 135).

Na parte setentrional e central da Itália, o que se desenvolvia era uma estrutura de governo autônomo. É nesse republicanismo comunal que se forma a “principal alternativa ao regime de vassalagem feudal predominante no resto da Europa medieval” (p. 135). Germinava ali uma relação de poder fundamentada mais na colaboração horizontal do que na verticalização hierárquica, instrumentalizada por associações organizadas para auxílio mútuo “com vistas à proteção e à cooperação econômica” (p. 136).

Esse acumulado de capital social proporcionado pelo republicanismo cívico foi fundamental para fomentar o comércio entre as regiões. Para seu crescimento, “era indispensável haver comunidades de comerciantes estreitamente integradas, capazes de manter instituições jurídicas ou semijurídicas para dirimir controvérsias, trocar informações e partilhar riscos. A prosperidade gerada pelo comércio, por sua vez, ajudou a moldar e manter as instituições cívicas das repúblicas” (p. 139).

No século XIV, os avanços até então alcançados encontraram poderosos obstáculos. O sectarismo, a fome, a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos “começaram a minar o espírito da comunidade cívica e estabilidade do governo republicano” (p. 142). Um terço dos cidadãos italianos foram dizimados pela devastação causada pela Peste Negra, vitimando, dentre outros, seis dos sete membros do Conselho dos Sete, instituição política da república comunal, dois meses após serem eleitos A Peste Negra “havia esgotado a energia cívica e abalado a vida cívica” (p. 142).

Dois séculos depois, as regiões comunais foram submetidas ao domínio senhorial, “embora os déspotas continuassem prestigiando as formas e os ideais do governo republicano” (p. 143). Por outro lado, no Sul, “Nápoles (…) teve sua população duplicada no século XV e mais que reduplicada na primeira metade do século XVI, tornando-se (depois de Paris) a segunda maior cidade europeia” (p. 145).

Na sequência, no século XVII, “todas as cidades da Itália setentrional e central deixaram de ser repúblicas ou mesmo, em muitos casos, independentes” (p. 146). Com a crise do republicanismo comunal, o resultado foi algo como uma “refeudalização” da península italiana, com a força mercantil e financeira dando lugar à “preocupação com a propriedade agrária e à indolência parasítica” (p. 146).

Um século depois, Nápoles já superava a marca dos 5 milhões de habitantes e era o maior Estado italiano, apesar de também o “mais mal administrado, o mais rotineiro e o mais negligente” (p. 147). Sua densidade populacional contrastava com a condição de uma região grotesca, onde “muitos de seus habitantes eram empregados reais, clérigos, criados domésticos e mendigos” (p. 147) contando um “campesinato terrivelmente sobrecarregado de trabalho, terrivelmente pobre, privado de direitos políticos” (p. 147).

Enquanto isso, no Norte, “o poder da aristocracia, que há muito vinha sendo desafiado, já começava a enfraquecer”. Do outro lado, no Sul, o poder do baronato continuava intacto.

Tradições cívicas após a unificação

O século XIX é reconhecido pela intensa vida associativa que despertou em boa parte da Europa Ocidental, particularmente entre as classes populares. Foi nesse período que “os governos liberais da França, da Itália e de outros países aboliram guildas, dissolveram entidades religiosas e desencorajaram a formação de quaisquer 'combinações' sociais ou econômicas semelhantes” (p. 148), algo que não foi aceito passivamente nas aldeias e cidades do continente.

Os reflexos da Revolução Industrial, que agora acrescentara ao antigo rol de problemas sociais (doenças, acidentes e velhice) o desemprego e o anonimato dos novos centros industriais, ensejava uma necessidade cada vez maior de solidariedade organizada. Novas formas de associação serão criadas a partir daí, como as lojas maçônicas, os clubes populares, orfeões, congregações religiosas e clubes de camponeses. Putnam aponta a possibilidade de que foi na fase Renascimento que a Itália despertou para esses formatos de organização que, por consequência, a permitiu unificar-se politicamente em 1870.

Vários movimentos políticos de massa surgiram na Itália até a I Guerra Mundial. Dentre esses, “o movimento socialista era o maior e mais ativo desses novos partidos, com crescente penetração tanto em áreas de maior industrialização incipiente quando em certas partes do interior, onde valia-se das tradições locais dos movimentos de protesto de camponeses e meeiros” (p. 152). Organizavam-se também os católicos, que, próximo às primeiras eleições do pós-guerra, fundaram o Partido Popular (Partido Popolare).

Serão esses os dois maiores partidos de massa após a I Guerra Mundial, ambos estruturando-se a partir do “legado de mobilização social, infraestrutura organizacional e energia das sociedades de mútua assistência, das cooperativas e dos sindicatos” (p. 152). A alternativa a ambos cujas origens sociológicas eram semelhantes, “era o labirinto de relações clientelistas verticais que por quase meio século constituíra a base do trasformismo, no qual os favores do Estado eram trocados (por intermédios dos graúdos locais) por apoio eleitoral” (p. 152-153).

Durabilidade das tradições cívicas

Onde se encontram as regiões mais cívicas nos dias atuais, são as mesmas que assim se caracterizavam um século ou um milênio atrás. É nesses locais que “a vida pública era tipicamente cívica há quase um milênio, sendo a vida comunitária igualmente efervescente, com suas guildas, consorterie, associações locais e outras formas de participação cívica” (p. 160). Existe aí, embora faltem dados estatísticos que deem consistência à análise, indícios “dessa continuidade [cívica] por volta de 1300, 1900 e 1970” (p. 160). Putnam considera, a partir dessa conclusão, que “teria sido possível prever com extraordinária exatidão o êxito ou o fracasso do governo regional na Itália nos anos 80 tomando por base o grau de participação cívica existente quase um século antes” (p. 160).

Desenvolvimento econômico e tradições cívicas

Putnam retoma a ideia lançada no capítulo 4 sobre a relação existente entre desenvolvimento econômico, capital social e desempenho institucional. Diante da observação de que onde o desempenho institucional é maior, também é superior o estágio da economia, ele parte de dois argumentos para relacionar a determinação mais poderosa que há entre a comunidade cívica e o desempenho institucional – e não o desenvolvimento econômico.

Primeiramente, a origem do “republicanismo comunal não parece ter sido consequência de um nível incomum de riqueza. O desenvolvimento econômico da Itália setentrional naquele período era bastante incipiente, muito inferior ao do Mezzogiorno de hoje e talvez muito inferior ao do Sul daquela época” (p. 162), sendo a prosperidade das repúblicas comunais resultado das “normas e dos mecanismos de participação cívica” (p. 162).

O segundo argumento refere-se às diferenças cívicas entre o Norte e o Sul, mais contrastantes em um milênio do que as diferenças econômicas – aumento, diminuindo ou mesmo se invertendo em vários momentos. Para Putnam, “as regiões cívicas não começaram sendo mais ricas e nem sempre foram mais ricas, mas, tanto quanto podemos afirmar, permaneceram invariavelmente mais cívicas desde o século XI. Tais fatos dificilmente condizem com a noção de que a participação cívica é mera consequência da prosperidade” (p. 162).

Lições da experiência regional italiana

O livro chega às páginas finais no momento que Putnam destaca as lições apreendidas nesse período de 20 anos em que as novas instituições fincaram raízes nas regiões italianas. As divergências metodológicas entre Norte e Sul acerca da ação sobre as questões coletivas se expressaram em um Norte que fomentou instrumentos associativos como as guildas, sociedades de mútua assistência, cooperativas, sindicato, clubes de futebol e sindicatos. Na avaliação do autor, “esses vínculos cívicos e horizontais propiciaram níveis de desempenho econômico e institucional muito mais elevados do que no Sul” (p. 191), região marcada pela verticalização das relações políticas e sociais.

Esta é um das lições, portanto: “o contexto social e a história condicionam profundamente o desempenho das instituições. Quando o solo regional é fértil, as regiões sustentam-se das tradições regionais, mas quando o sol é ruim, as novas instituições definham” (p. 191).

A historicidade das comunidades cívicas é um dado real. Ou seja, constrói-se em longo período de tempo, o que pode ser desalentador para os que consideram as reformas institucionais “como estratégia de mudança política” (p. 192). Putnam, no entanto, afirma que “os resultados da reforma regional estão longe de ser um convite à inércia” (p. 193), ressaltando que a experiência italiana confirma que “mudando-se as instituições formais pode-se mudar a prática política” (p. 193).

Quer dizer, embora as reformas não tenham provocado provocado a satisfação das “mais elevadas expectativas de seus partidários otimistas” (p. 193), houve transformações positivas mensuráveis com a mudança institucional no país. Para concluir, a criação “do capital social não será fácil, mas é fundamental para fazer a democracia funcionar” (p. 194).

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