sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A Gramática Política do Brasil (Edson de Oliveira Nunes, 1997)

Edson de Oliveira Nunes é formado em Direito e em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Ph.D. Em Ciência Política pela U.C. Berkeley e mestre em Ciência Política pelo IUPERJ, é professor e Vice-Reitor da Universidade Candido Mendes. Foi presidente do Conselho Nacional de Educação e de sua Câmara de Ensino Superior. Também foi presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, Vice-Presidente Executivo do IPEA (Instituo de Pesquisas Econômicas e Aplicadas) e representante do ministro do planejamento no Rio de Janeiro.

A 1ª edição de sua obra, A Gramática Política do Brasil, foi publicada em 1997. Nela, o autor aborda com riqueza de fatos e detalhes, de maneira mais detida, um período histórico do Brasil que vai do início dos anos 30, a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas, até o ano de 1964, anterior ao golpe militar. Edson de Oliveira Nunes identifica na formação recente do país a existência de quatros gramáticas por onde se realiza a mediação entre o Estado e a sociedade, que são: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos. A gramática política do Brasil está dividida em seis capítulos.

O autor inaugura o primeiro capítulo - Instituições, política e economia -, tecendo uma crítica à teoria da sociedade dualista na medida em que, em sua opinião, essa foca numa análise mediada especificamente pela produção, defendendo que é preciso observar não somente a esfera da economia, mas também "como emergiram novos tipos de organizações políticas e sociais, como se tornaram institucionalizadas e que impacto causaram em grupos, resolução de conflitos, padrões de intermediação de interesses e governabilidade" (p. 33). Destaca a relevância do estudo acerca das instituições e não somente o estudo da dualidade que se expressa nas relações de produção.

Apresenta o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45) como aquele que propiciou, inicialmente, a institucionalização de quatro gramáticas políticas que "estruturam os laços entre sociedade e instituições formais no Brasil" (p. 34), que são: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos. Defende que somente este último "reflete claramente a lógica do moderno mercado capitalista" (p. 34).

O governo de Getúlio Vargas, para o autor,
institucionaliza as gramáticas políticas no Brasil
O governo getulista é apresentado como um período de construção do Estado nacional (state building), cuja operação se realizou por meio de forte intervenção estatal na economia e de centralização administrativa e política, elementos que vieram a ser reforçados a partir do Estado Novo, em 1937. Essas medidas se opunham à República Velha e à tradicional força das oligarquias estaduais, cujo controle sobre as finanças locais foi sendo deslocado para o âmbito federal.

Apesar de promover medidas que desagradam as velhas elites agrárias, o governo federal mantinha uma política de conciliação com diversos interesses, mesmo esses antagônicos, algo que foi classificado como "Estado de compromisso", em que inexistia a supremacia de um ator político sobre outro. As mudanças implementadas por Vargas tinham a seguinte combinação: "a) intervenção estatal na economia, através da criação de agências e programas, políticas de proteção ao café e transferência de todas as decisões econômicas relevantes para a esfera do governo federal; b) centralização política, reforma administrativa, racionalização e modernização do aparelho de Estado; c) redefinição dos padrões de relacionamento entre oligarquias locais e estaduais, intensificação das trocas entre o governo federal e os grupos estaduais, com a simultânea centralização dos instrumentos para o exercício do clientelismo; d) incorporação do trabalho em moldes corporativos" (p. 76).

A produção de uma legislação específica para "incorporação do trabalho em moldes corporativos" se deu como um "esforço para se criar uma solidariedade social e relações pacíficas entre grupos e classes onde não teriam lugar a tradicional divisão entre partidos políticos nem os erros da ordem econômica liberal" (p.34).

Constituídas as bases para a gramática política do corporativismo, com a cooptação do sindicalismo e a intervenção nos sindicatos por meio da exclusão de lideranças contrárias ao governo, é no Estado Novo que Getúlio empreenderá uma forte centralização política e administrativa, enfraquecendo e esvaziando, com isso, o clientelismo praticado pelos governos locais, o que levou não a seu encerramento, mas a "novos recursos para sua prática, recursos agora administrados pelo governo federal" (p. 35).

Em 1938 foi criado o DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), órgão que auxiliou na implementação de um universalismo de procedimentos e que também se caracterizou como uma agência insulada. Quer dizer, tanto foi responsável por promover normas que seriam aplicadas sem distinção entre pessoas (universalismo) quanto também foi um organismo estatal técnico, especializado e racional (insulamento).

Após sua criação, o DASP buscou empreender uma reforma do serviço público e a instituição do sistema de mérito. Também foram criadas outras agências que se constituíram em "ilhas de racionalidade"  e especialização, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), a Petrobras e a Comissão Nacional de Energia Nuclear, "a maioria encarregada da produção econômica e da formulação política econômica, foram também insuladas contra a ampla rede de personalismo e clientelismo oriunda do sistema político" (p. 56).

Em um paralelo com o governo de Dutra, o autor define o período getulista como o de "construção do Estado" (p. 129) e o de Dutra como "uma época de construção partidária e de políticas econômicas liberais" (p. 129). É no governo deste presidente, pós-45, em que se reimplementa a democracia no Brasil e quando são constituídos novos partidos políticos. O autor destaca o PTB, o PSD e a UDN como os três principais.

Governo Dutra: "uma época de construção
partidária e de políticas econômicas liberais" 
Antes de aprofundar no governo Dutra, é importante destacar as análises feitas no segundo capítulo: Tipos de capitalismo, instituições e ação social. Neste, o autor aborda a complexidade do capitalismo, destacando que a questão de classe não é suficiente para a realização da ação coletiva e compreensão do conflito político. Destaca que "a dinâmica da estratificação da estrutura de classes deixa espaço para a existência de uma multiplicidade de grupos de interesses. No capitalismo moderno, a ação 'concertada' de grupos de indivíduos depende de vários fatores, tais como posição do grupo na matriz da estratificação social, acesso ao uso de recursos políticos, grau de satisfação das necessidades econômicas, arranjos dominantes para a agregação e intermediação de interesses, e assim por diante" (p. 40).

Ao analisar a evolução das sociedades capitalistas, destaca Nunes que, no Brasil, "o capitalismo moderno veio a acontecer (...) em contexto distinto daquele prevalecente nos países que se industrializaram cedo. O clientelismo constituía um importante aspecto das relações políticas e sociais no país. Os arranjos clientelistas não foram minados pela moderna ordem capitalista – permaneceram nela integrados de maneira conspícua" (p. 46).

Ele parte do estudo das relações no campo para justificar a historicidade da elevada dependência culturalmente estabelecida a partir do patrón-cliente, mais especificamente, no contexto brasileiro, do senhor de engenho como detentor de poderes quase absolutos sobre a família e sobre os trabalhadores de sua terra. Ao justificar nossas raízes clientelistas, toma emprestado de Mayeama ao analisar que "a sociedade brasileira procura 'universalizar' as relações no seu interior e manifesta pouca tolerância a grupos separados. A esta universalização soma-se uma forte hierarquização, que é atenuada por redes de relações pessoais" (p. 51-52).

O personalismo que se origina da Casa Grande impregnou as nossas instituições de vícios. "No Brasil, o universalismo de procedimentos está permanentemente sob tensão. Relações pessoais e hierárquicas são cruciais para tudo, desde obter um emprego até um pedido aprovado por um órgão público; desde encontrar uma empregada doméstica até fechar um contrato com o governo; desde licenciar o automóvel até obter assistência médica apropriada. Os brasileiros enaltecem o jeitinho (isto é, uma acomodação privada e pessoal de suas demandas) e a autoridade pessoal como mecanismos cotidianos para regular relações sociais e relações com instituições formais" (p.52).

Formam um contraponto a essa cultura do clientelismo tanto o insulamento burocrático quanto o universalismo de procedimentos. No caso do primeiro, "é percebido como uma estratégia para contornar o clientelismo através da criação de ilhas de racionalidade e de especialização técnica" (p.54). Já em relação ao universalismo de procedimentos, por ser "baseado nas normas de impersonalismo, direitos iguais perante a lei, e check and balances, poderia refrear e desafiar os favores pessoais" (p. 54).

No pós-45, algumas mudanças importantes vão se operar na institucionalidade do país. O DASP, que cumpriu importante função no governo de Getúlio Vargas, será submetido a um processo de esvaziamento, começando pelo encerramento do seu papel planejador. Uma das consequências dessa medida é que em 1961, não mais de 12% do funcionalismo público havia ingressado por meio de concurso.

O novo regime não era novo em relação a quem lhe assegurava sustentação. "A rede de interventores e prefeitos nomeados constituiu a base para a fundação do partido conservador, o PSD, que foi criado com os recursos para a patronagem à disposição da ditadura [de Vargas] e controlou o Congresso nas eleições de 1945. Assim, o clientelismo que cresceu à sombra da estrutura social brasileira tornou-se instrumento de engenharia política astuciosamente manipulado por aqueles que se encontravam no poder" (p. 98).

Destaca Nunes o papel da transição encetada no encerramento do ciclo do Estado Novo na conformação da "institucionalização do clientelismo" (p. 98) e nos "dilemas que marcaram o Brasil nos últimos anos" (p. 98). "As transições são importantes porque é durante os anos iniciais de um regime que se forja a redefinição do instrumental institucional. Sua configuração e formato dependerão do tipo de transição que venha a ocorrer: que forças o sustentam e que forças o manipulam. Em tal contexto, muitos aspectos são cruciais: como foram organizados os partidos políticos e quais eram suas metas? Até que ponto a nova Constituição refletiu e influenciou a redefinição institucional, e até que ponto ela refletiu o legado do regime anterior?" (p.98), questiona o autor.

O PSD seria, nessa transição a um regime democrático, um partido "mobilizado internamente", ou "partido de dentro", o que quer dizer que ele foi produzido a partir das relações constituídas como um partido influente no governo. É diferente do caso da UDN (União Democrática Nacional), cujos membros se caracterizavam, de maneira geral, como aqueles que não se identificavam com o projeto getulista de poder.

Nunes analisa particularmente o caso deste partido quanto às suas contradições frente à realpolitik. Para ele, "sufocada pela lógica 'realista', a UDN perdeu a chance de se tornar um bastião do universalismo. Mesmo no período que se seguiu imediatamente à restauração da democracia, ela já havia começado a colaborar com o governo Dutra e com o PSD. Como a UDN foi fundada em abril de 1945 e Dutra foi eleito em dezembro do mesmo ano, isto significa que ela só foi um partido de oposição durante oito meses!" (p. 108).

O comportamento da UDN transformou o sentido 
do universalismo de procedimentos em algo suspeito
Há uma relação de oposição que se estabelece em todo o período analisado e ainda na ditadura militar entre o corpo técnico e os políticos. Seja na década de 30, quando Getúlio fechou os partidos políticos, seja na década de 40 e 50, quando foram tomadas medidas para isolar o corpo técnico das agências e órgãos insulados da influência dos partidos ou, nas décadas de 60 e 70, quando a ditadura promoveu uma mudança de perfil dos dirigentes políticos a partir de critérios técnicos, em boa parte dos casos, a busca pela racionalidade serviu como argumento para conter a influência dos partidos em relação à burocracia.

"Essa discussão aponta para uma divisão do trabalho entre o clientelismo e o insulamento burocrático. Além disso, reconcilia o argumento sobre a existência de um Estado cartorial com o argumento que a nega. O Estado cartorial realimentou a construção partidária, enquanto o insulamento burocrático serviu como um importante meio de ação rumo ao desenvolvimento econômico" (p. 124).

Destaca Nunes a existência de um sincretismo que é inédito no país a partir do final da Segunda Guerra Mundial. O Brasil conviverá com um sistema democrático alicerçado por partidos políticos ao tempo em que desenvolverá um plano de desenvolvimento de sua indústria. O autor ilustra esse momento concluindo que "a década de 50 foi um período contraditório no Brasil. Ao lado da política do clientelismo, que atingiu seu apogeu com a coalizão PSD-PTB, perfeitamente complementada pela UDN, mecanismos alternativos para canalizar interesses industriais e desenvolvimentistas foram criados e escaparam ao controle da máquina política tradicional. Ao lado de uma ideologia nacionalista quase universal entre as elites, expandiu-se a internacionalização de fato da economia brasileira, bem ilustrada pela indústria automobilística" (p. 131-132).

Dentre as medidas adotadas pela burocracia insulada, destacam-se os incentivos para importação de capitais, medidas fiscais para ampliar os investimentos estatais, investimentos estrangeiros em níveis cada vez maiores e aumento dos gastos públicos. Combinadas, essas ações do governo "forneceram os meios materiais para sustentar o desenvolvimento econômico baseado num conjunto sincrético de instituições políticas. Este sincretismo resultou na permanência do clientelismo em certas arenas políticas, no insulamento de outras (de modo que pudessem funcionar à distância do sistema político tradicional) e na manutenção da estrutura corporativa".

Mesmo no corpo técnico especializado, havia visões diferentes de país. Sinteticamente essas se diferenciavam também quanto ao espaço de atuação. De um lado estavam os técnicos da SUMOC (Superintendência da Moeda e Crédito), instituição que viria a se tornar o Banco Central do Brasil e que detinha uma linha "ortodoxa e com fortes laços com o FMI e com a comunidade econômica internacional" (p. 135). Do outro, a Assessoria Econômica, que "concentrava suas atenções na estrutura econômica e nos impactos sociais do crescimento econômico" (p. 136).

Destaca Nunes que foi no governo de Juscelino Kubitschek que o insulamento burocrático foi utilizado "em larga escala, combinando-o com a patronagem, para consolidar o avanço da industrialização brasileira" (p. 137). O período JK é singular na compreensão singular desse sistema híbrido que se estabeleceu no país. Percebe-se aí, com maior força, formulações que, por vezes contraditórias, contribuíram e deram sentido à política de desenvolvimento nacional. "O nacional-desenvolvimentismo forneceu uma base para a formulação de políticas e para um sentido de desígnio, sob a dominação dos 'nacionalistas pragmáticos'. Esta estratégia nacionalista não excluía o capital estrangeiro, na medida em que este contribuiu para a verticalização do processo de industrialização no Brasil" (p. 142).

O autor discorre sobre o apoio alcançado no Congresso por Juscelino, articulando o apoio dos três maiores partidos em grande parte das votações e combinando um modelo de desenvolvimento altamente insulado e que manteve preservada as bases do clientelismo. "Ao mesmo tempo que se apoiava nas agências insuladas para realizar as tarefas de desenvolvimento, Juscelino utilizava a política tradicional de empreguismo para consolidar apoio político: protegia as agências insuladas e lhes garantia acesso aos recursos, enquanto geria o resto do sistema político de modo a reduzir as potenciais contestações às metas desenvolvimentistas e às suas formas de alcançá-las." (p. 149).

Nunes destaca a combinação das gramáticas políticas como um "ato de malabarismo" e exemplifica o modelo a partir dos mandatos de Getúlio e Juscelino, destacando que ambos buscaram "evitar que a politização das questões gerasse uma paralisia decisória na parte executiva: ambos mantiveram os técnicos discordantes em diferentes agências, garantindo assim a eficiência e a consistência interna de cada agência. Os dois presidentes puderam manipular as agências e reconciliar suas atividades em fóruns maiores como o Conselho de Desenvolvimento, os Grupos Executivos ou o BNDE, onde as decisões eram baseadas em premissas mais pragmáticas e menos ideológicas. Assim, o debate ideológico podia prosseguir, tanto no Congresso como entre técnicos e agências, sem efeitos particulares nas decisões" (p. 152).

Conclui o autor enaltecendo como as gramáticas políticas interagem entre si, destacando, entre outras associações, que, enquanto regra geral, que "os políticos, por exemplo, usam tanto a linguagem do clientelismo quanto a do universalismo, mas jamais endossam, mesmo retoricamente, a lógica do insulamento burocrático. Tecnocratas e militares empregam igualmente a linguagem do universalismo e a da 'competência técnica', mas nunca a do clientelismo. Grupos de interesse das classes médias tendem a utilizar apenas a linguagem do universalismo, rejeitando tanto o clientelismo como o insulamento burocrático, por considerá-los não-democráticos" (p. 161). Apesar dessa afirmação, "dependendo do contexto todos os atores podem utilizar estratégias que contradizem sua retórica pública" (p. 161).

Ao final da conclusão, Nunes destaca que a elaboração dessas gramáticas pode ser aprofundada para os períodos históricos mais recentes do país.

BIBLIOGRAFIA:

NUNES, Edson de Oliveira. A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

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