domingo, 13 de outubro de 2013

Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1936)

Sérgio Buarque de Holanda nasceu em 11 de julho de 1902, em São Paulo, e é reconhecido como um dos maiores historiadores brasileiros. Exerceu também a função de crítico literário e jornalista. Ao lado de Caio Prado Júnior, com o livro Formação do Brasil Contemporâneo (1942), e de Gilberto Freyre, com Casa Grande & Senzala (1933), é considerado criador de uma das três grandes obras que, no século XX, conformaram um olhar crítico e reflexivo nossa formação social.


Segundo o sociólogo Antônio Cândido, a obra Raízes do Brasil, ao jogar luz sobre o “preconceito de raça, a valorização do elemento de cor, a crítica dos fundamentos 'patriarcais' e agrários, o discernimento das condições econômicas” e desmistificar o discurso dos liberais, se contrapôs às obras famosas daquele período, de autores como Oliveira Viana e Alberto Torres, cujos métodos apostavam em narrativas de características naturalistas ou, em sentido mais amplo, positivistas.

O livro, longo ensaio histórico, é constituído por sete capítulos, divididos em: 1) fronteiras da Europa, 2) trabalho & aventura, 3) herança rural, 4) semeador e o ladrilhador, 5) o homem cordial, 6) novos tempos e 7) nossa revolução. 

Sérgio Buarque inaugura Raízes do Brasil, em seu primeiro capítulo, abordando as características que traduzem a maneira de agir e pensar do povo ibérico, em contraposição, mesmo, aos seus vizinhos europeus. Destaca o autor elementos como a cultura da personalidade, edificada pela autonomia dos homens “em relação aos seus semelhantes no tempo e no espaço” um dado decisivo da constituição do povo hispânico. “Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço, de suas virtudes” (p. 32) e o esforço e bens acumulados servem de maior referência do que a origem de sangue.

De forma a consolidar esse argumento, destaca a intensa mobilidade social da sociedade ibérica, a partir da “troca constante de indivíduos, de uns que se ilustram, de outros que voltam à massa popular donde haviam saído” (p. 35). Evidencia um aspecto, também singular a esse povo, de moldar-se a novas formas de existência, como o que, ao final do século XV, conduziu à formação de “unidades políticas e econômicas de expressão moderna” (p. 36), os Estados Nacionais.

Um último atributo, que se segue ao culto à personalidade, à permanente mobilidade social e à adaptabilidade, considera Sérgio Buarque, é a “invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho” (p. 38), elemento que sofreria alteração muito tempo depois, diante da ampliação do reconhecimento das instituições dos povos do Norte, conquistando terreno, a partir de então, entre os ibéricos, a ética do trabalho. Tanto para o português quanto para o espanhol tanto valia mais o ócio do que a batalha árdua e dura do cotidiano. O que julgam, até então, como ideal é uma “vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação” (p. 38).

Apresentadas essas considerações de desvalor do trabalho manual e de reconhecimento às qualidades individuais entre os povos ibéricos, o autor adentra o segundo capítulo do livro 'Trabalho & Aventura' opondo um elemento a outro do título, realçando a existência de uma ética do trabalho e uma ética da aventura.

Ao evidenciar os portugueses como um povo aventureiro, Sérgio Buarque destaca a existência de um “desleixo e certo abandono” (p. 43) da obra colonizadora pelos portugueses ao pontuar um sobrevalor destes pela aventura que produz retornos imediatos em contraposição à realização pelo trabalho. Em sua análise, em uma época em que havia uma predisposição aos “gestos e façanhas audaciosos, galardoando bem os homens de grandes voos” (p. 45), não seria um caso fortuito que as iniciativas mais destacadas surgissem a partir de uma região que gozava de relevante característica aventureira.

A princípio, o que os portugueses desejavam construir no Brasil não era uma sociedade agrícola. Preferiam eles algo semelhante ao que acontecera nas Índias, por meio das feitorias e do intenso intercâmbio por especiarias e metais preciosos. São três os fatores que levaram o autor a chegar a essa conclusão: a existência do espírito aventureiro, e não do trabalho, que os levou à América, a escassez populacional no período do descobrimento e a “circunstância de a atividade agrícola não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza” (p.49).

Esse elemento de rejeição ao esforço pelo trabalho e a existência da colonização agrícola no país produzirá contradições que se manifestarão decisivamente no âmbito da economia brasileira. “Todos querem extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios” (p. 52), tendo os colonizadores cedido facilmente “às sugestões da terra e dos seus primeiros habitantes, sem impor-lhes normais fixas e indeléveis” (p. 52), o que nos proporcionou uma agricultura de qualidade inferior à praticada por outros países, inclusive pelos Estados Unidos.

Uma das características que assumiu a lavoura latifundiária no Brasil colonial, em contraste com o que ocorreu na América espanhola, “foi a ausência, praticamente, de qualquer esforço sério de cooperação nas demais atividades produtoras”. Em outros países da região, havia, por exemplo, desde o século XVI, universidades, oficinas, dentre outros que contribuíram para diversificar as suas potencialidades econômicas e forneceu as bases de sociedades mais dinâmicas.

Durante o século XVII, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais promoveu uma série de invasões ao Nordeste do Brasil, dominando por um período as cidades de Recife e Olinda, na capitania de Pernambuco. Sérgio Buarque estabelece uma relação de oposição entre os colonizadores portugueses e os colonizadores holandeses a partir de sua capacidade de adaptação e de trabalho, ao afirmar que “o que faltava em plasticidade aos holandeses, sobrava-lhes, sem dúvida, em espírito de empreendimento metódico e coordenado, em capacidade de trabalho e em coesão social” (p. 62). No entanto, “os tipos de colonos que eles nos puderam enviar, durante todo o tempo de seu domínio nas terras do Nordeste brasileiro, era o menos adequado a um país em formação. Recrutados entre aventureiros de toda espécie, de todos os países da Europa, 'homens cansados de perseguições', eles vinham apenas em busca de fortunas impossíveis, sem imaginar criar fortes raízes na terra” (p. 62). Frente à opulência vivida na Holanda, não queriam os de lá deslocar-se em aventura para o Brasil.

Sobre a tentativa de se construir aqui, por parte dos holandeses, uma “extensão tropical da pátria europeia” (p. 64), acabou derrotada “ante a inaptidão que mostraram para fundar a prosperidade da terra nas bases que lhe seriam naturais, como, bem ou mal, já o tinham feito os portugueses. Segundo todas as aparências, o bom êxito destes resultou justamente de não terem sabido ou podido manter a própria distinção com o mundo que vinham povoar. Sua fraqueza foi sua força” (p.64). Apesar disso, no período que os holandeses estiveram em Pernambuco, construíram uma paisagem urbana com tal opulência que não se via em outras regiões do país. Construíram, por exemplo, palácios monumentais como o de Schoonzit e de Vrijburg.

Palácio de Schoonzit (Boa Vista), construído
durante o governo de Maurício de Nassau
Outros elementos para o fracasso da colonização holandesa no Brasil o autor apresentará como a língua, em que a dos portugueses oferecia aos nativos uma disposição de maior simpatia e menos dificuldades fonéticas, e também o contato de maior intimidade dos portugueses com a população de cor.

Raízes do Brasil entra no seu terceiro capítulo abordando a nossa herança rural a partir da dimensão por onde se constituiu a sociedade colonial, qual seja, fora dos meios urbanos.

A primeira e mais importante observação feita por Sérgio Buarque de Holanda neste capítulo refere-se à forma como a estrutural colonial se consolidou no Brasil, estritamente assentada no ambiente agrário e pouco afeito à reprodução social a partir das cidades. Naquele ambiente, a autoridade do proprietário rural era absoluta. “Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo” (p. 80). Observa o autor que mesmo certos tipos de gêneros alimentícios eram mais facilmente encontrados nos domínios rurais do que nas cidades e que a família colonial era “o único setor onde o princípio da autoridade é indisputado” e que, por sua vez, “fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens” (p. 82).

Era daí, das grandes fazendas, que se estabelecia o monopólio político e se constituía a estabilidade das instituições em um ambiente sem contestação. Aos proprietários rurais do período, Sérgio Buarque reconhece que “a eles, de certo modo, também se deve o bom êxito dos progressos materiais que tenderiam a arruinar a situação tradicional, minando aos poucos o prestígio de sua classe o principal esteio em que se descansava esse prestígio, ou seja, o trabalho escravo” (p. 73).

Sem uma economia intermediária e com as relações de trabalho quase que exclusivamente constituída entre senhores de terra e escravos, sobrestou prejudicada a existência de uma demanda por serviços públicos que atendessem a uma numerosa parcela da sociedade. Ademais, constituía um obstáculo desenvolver serviços públicos onde “o desperdício das áreas da lavoura determinou com frequência deslocações dos núcleos de povoamento rural e formação, em seu lugar, de extensos sítios ermados, ou de população dispersa e mal apegada à Terra” (p. 88).

Para o autor, o marco temporal que representa o início da superação da herança rural, que nos legou uma formação social baseada na submissão da cidade ao campo, é 1888, ano da abolição. Tal era o monopólio do poder político pelo campo, no Brasil colonial, que os comerciantes, moradores das cidades, reivindicavam ombrear-se com os proprietários de terra quanto ao poder exercido nas câmaras municipais, não logrando êxito em tal intento.

A antiguidade clássica, ainda no capítulo terceiro, é revisitada a partir dessa relação entre urbano e rural. Em oposição ao que ocorreu na colônia portuguesa da América, “em alguns lugares da bacia do Mediterrâneo, na Sicília, por exemplo – segundo informou Max Weber -, não residiam os lavradores, em hipótese nenhuma, fora dos muros das cidades, devido à insegurança e aos extraordinários perigos a que se achavam expostos constantemente os domínios rurais. As próprias 'vilas' romanas eram, antes de mais nada, construções de luxo, e não serviam para residência habitual dos proprietários, mas para vilegiatura” (p. 89-90).

Postas essas informações, delimitadas no tempo até o segundo século da colonização brasileira, destaca Sérgio Buarque que, no nosso caso, “as terras eram a morada habitual dos grandes. Só afluíam eles aos centros urbanos a fim de assistirem aos festejos e solenidades. Nas cidades apenas residiam alguns funcionários da administração, oficiais mecânicos e mercadores em geral” (p. 90) .

Nesse contraste entre cidade e campo, no Brasil, marcado pela hegemonia agrícola, chama atenção que, até a descoberta do ouro pelos bandeirantes, ao final do século XVII, inaugurando assim uma nova fase na nossa história, era aqui marcante a miséria intelectual e cultural, visto que, na América Espanhola, são estimados em 150 mil o número de pessoas que se graduaram em cursos de nível superior. Entre os naturais do Brasil, no período de 1775 e 1821, foram 720, todos estes fora do país, em Coimbra. Sem contar na impressão de jornais e de livros que naquela região começaram a ser impressos a partir do século XVI.

É no capítulo 5 que Sérgio Buarque desenvolve seu conceito de "homem cordial", uma contribuição original à interpretação da realidade brasileira. A partir da análise weberiana de Estado, afirmará que "é possível acompanhar, ao longo da nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente propício em círculos fechados e poucos acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. (...) as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós (p. 146)".

A cordialidade brasileira exprime-se pela "lanheza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, (...) um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humanos, informados no meio rural e patriarcal" (p. 146-147). A cordialidade, no entanto, não implica em boas maneiras, civilidade ou mesmo apatia a conflitos, mas são "antes de tudo expressões legítimas de fundo emotivo extremamente rico e transbordante" (p. 147). É possível, a partir dessa cordialidade, se cometer as maiores atrocidades ou gestos mais reprováveis na defesa de um amigo ou parente.

Entre nós, o desejo de estabelecer intimidade se expressa também na língua, com a valorização dos prenomes ante aos sobrenomes. "Em regra, é o nome individual, de batismo, que prevalece. Essa tendência, que entre portugueses resulta de uma tradição com velhas raízes - como se sabe, os nomes de família só entram a predominar na Europa cristã e medieval a partir do século XII - acentuou-se estranhamente entre nós" (p. 148). O diminutivo de nomes, para o autor, é uma característica dos brasileiros que nem mesmo existe em Portugal. "A terminação -inho, aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração" (p. 148).

É no capítulo 6, Novos Tempos, que Sérgio Buarque desenvolve um contraponto à ideia apresentada no capítulo anterior. Apesar de toda a sociabilidade aplicada ao homem cordial, a "aptidão para o social está longe de constituir um fator apreciável de ordem coletiva" (p. 155). Ele afirma que "cada indivíduo (...) afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contraria suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo".

Essa característica de valorização do personalismo e do indivíduo reflete-se na afeição que possuímos pelas carreiras liberais, cuja sedução "vincula-se estreitamente ao nosso apego quase exclusivo aos valores da personalidade" (p. 157) e por "tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante" (p. 158). Essa vocação à "crença mágica no poder das ideias" (p. 160) terá implicações profundas nas reformas pelas quais viveu o Brasil nos anos seguintes, visto que "os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer dizer, tanto quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade" (p. 160).

O germe da negação e da superação desses traços que nos caracterizaram enquanto povo inscreve-se no capítulo que encerra o livro, Nossa Revolução. Nele, o autor evidencia o ano de 1888 como o do fim da dominação agrária, em que "o quadro político instituído no ano seguinte [1889] quer responder à conveniência de uma forma adequada à nova composição social. Existe um elo secreto estabelecendo entre esses dois acontecimentos e numerosos outros uma revolução lenta, mas segura e concertada, a única que, rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional" (p. 171).

A "Nossa Revolução" é resultado de um longo percurso histórico em que vai se alterando o centro dominante da política nacional invertendo-se o polo agrícola para os centros urbanos, e que vai produzindo um novo sentido cultural ao povo brasileiro, conforme o autor, ao afirmar que "testemunhamos presentemente, e por certo continuaremos a testemunhar durante largo tempo, as ressonâncias últimas do lento cataclismo, cujo sentido parece ser o do aniquilamentos das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério" (p. 172).

"Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve atribuir-se tal fato sobretudo às insuficiências do 'americanismo', que se resume, até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões imposta de fora, exteriores à terra" (p. 172)
Nesse processo de transformação das nossas raízes culturais ibéricas, a mediação que se opera aí é orquestrada por ela e pelo que ela nos produziu de original - a cordialidade - no que Sérgio Buarque analisa que "a forma visível dessa revolução não será, talvez, a das convulsões catastróficas, que procuram transformar de um mortal golpe, e segundo preceitos de antemão formulados, os valores longamente estabelecidos. É possível que algumas das suas fases culminantes já tenham sido ultrapassadas, sem que possamos avaliar desde já sua importância transcendente. Estaríamos vivendo assim entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz" (p. 180).

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